Fake news circularam na imprensa na epidemia de 1918

Março/2020

Cristiane Albuquerque | Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

Distribuição de caldo. Apesar de não haver comprovação científica, o produto era divulgado na imprensa como milagroso. Foto: Revista Careta/Acervo Casa de Rui Barbosa.

Água quente com vinagre, receita de coco e até óleo consagrado. Esses são alguns ingredientes de receitas que circulam na internet prometendo, sem nenhuma comprovação científica, combater o novo coronavírus (Covid-19). Se a divulgação das chamadas fake news – ou notícias falsas – tornou-se um fenômeno massivo com as redes sociais e o uso de aplicativos de troca de mensagem pelo celular, em 1918, foram a imprensa carioca e até mesmo as autoridades que contribuíram para disseminar as chamadas ‘receitas peculiares’ que prometiam curar a gripe espanhola. Essa é uma das constatações do artigo O Carnaval, a peste e a ‘espanhola’, do pesquisador Ricardo Augusto dos Santos, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). 

Acredita-se que a gripe espanhola tenha sido trazida ao território brasileiro por um navio inglês, o Demerara, que passou pelos portos de Recife, Salvador e Rio de Janeiro em 1918. Em meados de setembro daquele ano, essas cidades portuárias já estavam infestadas. Com o avanço da doença, algumas promessas de cura eram noticiadas pela imprensa da época: caldo de galinha, quinino, ovos e limão eram alguns dos produtos considerados milagrosos. “Mesmo sem comprovação do valor terapêutico das substâncias e o desconhecimento do perigo da ingestão sem controle, os jornais divulgavam receitas com a promessa de cura. Verdadeiros ou não, esses boatos eram como se fossem realidade pelo impacto emocional que causavam e eram distribuídos pelo governo”, destaca Ricardo. 

O estudo publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos observa, ainda, que situação semelhante também foi identificada durante a pandemia da Peste Negra que assolou a Europa do século 14 a 17. Naquele período, surgiram diversas explicações para o mal: castigo divino, influência dos planetas e contaminação do ar e da água por ‘suspeitos’ eram respostas que davam sentido às epidemias e ao cotidiano massacrado pelo horror, contribuindo para que o medo tomasse conta da população. “Na época dos surtos epidêmico da peste na Europa, a maioria esmagadora da população não sabia ler. A divulgação dos boatos era feita de forma verbal, as pessoas comentavam umas com as outras e espalhavam as informações imprecisas”, comentou o pesquisador. 

O jornal Gazeta de Notícias destaca na primeira página o caos no Rio de Janeiro dominado pela gripe espanhola em 1918. Imagem: Acervo Biblioteca Nacional.

Atualmente, alguns veículos da imprensa têm equipes dedicadas exclusivamente ao fact checking – verificação de fatos a partir de dados, estudos científicos e registros de órgãos oficiais, por exemplo. No contexto da atual pandemia do coronavírus, o pesquisador adverte para a necessidade de buscar e somente compartilhar informações de fontes confiáveis e seguras. “As informações incorretas podem contribuir de forma negativa para esse problema de saúde pública. Desta forma, a imprensa deve atuar na desconstrução de narrativas distorcidas sobre a pandemia”, defendeu. No portal Fiocruz é possível encontrar notícias e orientações sobre a Covid-19 e o novo coronavírus: fiocruz.br/coronavirus.

Ruptura de normas sociais

Uma vez associada a moléstia ao doente, este era isolado. (…) As autoridades públicas restringiram-se a orientar a população a evitar os lugares de aglomerações (…). O medo apossou-se pouco a pouco da população. Os trechos destacados podem parecer familiares e similares aos alertas feitos atualmente, mas remetem às recomendações de prevenção tanto da peste quanto da gripe espanhola. No cenário atual, as instruções das autoridades são semelhantes. De acordo com o historiador, as epidemias são um risco para todos. Mas, no contexto brasileiro, é preciso levar em consideração, também, a questão social no enfrentamento de epidemias. 

“As pessoas mais pobres, por exemplo, não possuem moradia e alimentação adequadas, muitos pertencem ao chamado mercado informal. Cumprir as medidas de prevenção pode significar não ter renda. Por isso, muitos continuam trabalhando, correndo riscos. As autoridades devem considerar as características desse grupo social para que ele não tenha sua saúde e economia ainda mais prejudicados”, advertiu Ricardo. 

Outros pontos de convergência entre as epidemias, segundo o pesquisador, são a negação da sua existência ou a avaliação de que os surtos serão pequenos. Explicações que associam as epidemias a castigos divinos contra os pecados dos homens também são muito frequentes. A fuga, a perda dos laços comunitários, a ruptura das normas sociais e o medo são outras manifestações que, apesar das diferenças sociais e históricas, são recorrentes. 

“Talvez a maior semelhança entre as epidemias seja a quebra das normas sociais de convivência e sociabilidade. Os processos são rápidos e, de uma hora para outra, a vida é suspensa. Durante a gripe, no Rio, em 1918, as pessoas jogavam nas ruas os cadáveres de parentes próximos para que carroças recolhessem os corpos ou os enterravam nos quintais. A epidemia impossibilitou que esse tipo de ritual funeral fosse executado, por exemplo”, pontuou.

Epidemias: sentimentos de medo e prazer

A partir da análise da obra literária Decamenon de Giovanni Boccaccio, o artigo mostra ainda que, apesar do impacto dramático da peste negra e das orientações de isolamento, aquele período foi marcado por comportamentos descritos como uma ‘busca aos prazeres antes que o mundo acabasse’. “Nesse aspecto, as epidemias proporcionam sentimentos de medo e prazer. Medo da morte e a alegria de continuar vivo. Para muitos, o fim do mundo era certo e estava próximo, o que os levava ao esquecimento da doença pelo prazer. Por isso, as pessoas não respeitaram as orientações de isolamento, saiam às ruas para se divertir e bebiam sem constrangimento”, explicou Ricardo. 

Já no Rio de Janeiro, registros da imprensa da época mostram que cariocas foram obrigados a cumprir tais determinações. Dois terços da população ficaram doentes e acamados, e o número oficial de mortos foi de cerca de 15 mil. Em novembro de 1918, depois de três meses de epidemia, a gripe espanhola estava controlada na cidade. 

De acordo com o estudo, após a epidemia, um fenômeno interessante aconteceu no Rio de Janeiro: o Carnaval de 1919, o primeiro depois da gripe, foi apontado como um dos mais animados da época. Elementos presentes na epidemia foram alvos de crítcas ou brincadeira. A cidade se divertiu e brincou com um evento que ainda estava causando terríveis reflexos e as revistas ilustradas como O malho e Careta documentaram em dezenas de fotografias a folia que animou o Rio. “Uma alegria incomum que tomou conta da cidade. Registros mostram a festa popular com bailes, blocos, batalha de confetes e até uma dramatização carnavalesca da situação que os vitimara. Era a festa e o prazer, onde antes havia medo e morte”, finalizou. 

Gripe espanhola: a cidade ganhou um ar sepulcral, mostra historiadora

O cotidiano da cidade do Rio de Janeiro durante o surto de gripe espanhola em 1918 também é discutido em artigo da historiadora Nara Azevedo, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz. Em La dansarina: a gripe espanhola e o cotidiano na cidade do Rio de Janeiro, publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, ela aponta que, “além de esvaziar a cidade de seus sons cotidianos, a gripe afetou a boemia”. “A cidade foi progressivamente paralisando até ganhar um ar sepulcral. Todos os serviços funcionavam precariamente por falta de pessoal”, escreveu a pesquisadora.
  
Entre os relatos, Nara Azevedo cita trecho de um texto publicado pelo Correio da Manhã em 20 de outrubro de 1918. “Era fúnebre o aspecto da cidade ontem à noite. Todo o comércio fechado, o movimento nulo, absolutamente nulo. Um ou outro bar e botequim ainda servia a freguesia, mas de longe em longe, porque, em sua quase totalidade, essas casas, que tanta vida davam à cidade, não funcionavam. O café não se encontrava, nos que com pessoal reduzido procuravam atender os fregueses”, publicou à época o jornal.

Fonte: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

Sobre a gripe espanhola, leia no Blog de HCS-Manguinhos:

Cuidado com a ‘Espanhola’!
Artigo de Ricardo Augusto dos Santos conta como os cariocas dramatizaram a febre que dizimou a população em 1918 no carnaval do ano seguinte

A gripe espanhola e o caso da fábrica Santa Rosália, em Sorocaba, 1918
Proprietário impediu a interrupção dos trabalhos no auge da epidemia, mesmo sob pedidos do poder municipal. Artigo contribui com os estudos sobre as epidemias no interior do país, ressaltando as colaborações da história local às pesquisas sobre a história das doenças no Brasil.

A epidemia de gripe de 1918 e 1919 na Gazeta de Coimbra
Em artigo em HCS-Manguinhos, Ana Maria Diamantino Correia, doutoranda em História Contemporânea da Universidade de Coimbra, analisa a epidemia a partir de publicações no jornal

Há 115 anos, epidemia de peste no Rio
Matheus Alves Duarte da Silva escreve ‘O baile dos ratos’: a construção sociotécnica da peste bubônica no Rio de Janeiro (1897-1906)

Sobre epidemias, leia no Blog de HCS-Manguinhos:

O Covid-19 e as epidemias da Globalização
“As epidemias regressam para nos recordar da nossa vulnerabilidade ante a enfermidade e o poder”, afirma Marcos Cueto, editor-científico de HCS-Manguinhos, autor de trabalhos sobre epidemias e coautor de livro sobre a OMS

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Ilana Löwy, pesquisadora do Instituto Nacional de Saúde e de Pesquisa Médica de Paris, conta como os surtos de rubéola estimularam a descriminalização do aborto na Europa

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Livro reúne artigos de autores renomados na área de história da saúde

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“Como prevenir uma infecção sexualmente transmissível sem falar de sexo e sexualidade?”, questiona Eliza Vianna, pesquisadora da história da Aids. Ela deu entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos por ocasião do Dia Mundial de Luta Contra a Aids e do lançamento da nova campanha do Ministério da Saúde.

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Gabriel Lopes, pós-doutorando do PPGHCS/COC, analisa as primeiras reações de cientistas e autoridades de saúde pública contra as epidemias de malária causadas pelo Anopheles gambiae

La fiebre amarilla y la medicina china en Perú. Artículo de Patricia Palma explora el crecimiento de diversos saberes médicos durante y tras la epidemia de fiebre amarilla en Lima, Perú.

La cólera, la desinformación y el comercio en Veracruz. Beau Gaitors y Chris Willoughby exploran el problema comercial y sanitario enfrentado por el puerto mexicano en el siglo 19.

Leia artigos sobre epidemias na revista HCS-Manguinhos:

Entre vacinas, doenças e resistências: os impactos de uma epidemia de varíola em Porto Alegre no século XIX, artigo de Fábio Kühn e Jaqueline Hasan Brizola (vol.26, no.2, abr 2019)

Zika e Aedes aegypti: antigos e novos desafios, artigo de Flávia Thedim Costa Bueno et al (v. 24, no.4, out 2017)

Cidade-laboratório: Campinas e a febre amarela na aurora republicana, artigo de Valter Martins (vol.22, n.2, jan./abr. 2015)

As epidemias nas notícias em Portugal: cólera, peste, tifo, gripe e varíola, 1854-1918. Artigo de Maria Antónia Pires de Almeida, Jun 2014, vol.21, no.2

Não é meu intuito estabelecer polêmica”: a chegada da peste ao Brasil, análise de uma controvérsia, 1899 Artigo de Dilene Raimundo do Nascimento e Matheus Alves Duarte da Silva, Nov 2013, vol.20, suppl.1

Bactéria ou parasita? a controvérsia sobre a etiologia da doença do sono e a participação portuguesa, 1898-1904. Artigo de Isabel Amaral. Dez 2012, vol.19, no.4

‘Formidável contágio’: epidemias, trabalho e recrutamento na Amazônia colonial (1660-1750), artigo de Rafael Chambouleyron, Benedito Costa Barbosa, Fernanda Aires Bombardi e Claudia Rocha de Sousa (vol.18, no.4, dez 2011)

A epidemia de cólera de 1853-1856 na imprensa portuguesa, artigo de Maria Antónia Pires de Almeida (v. 18, no.4, dez 2011) 

A gripe de longe e de perto: comparações entre as pandemias de 1918 e 2009, artigo de Adriana Alvarez et al. (vol.16, no.4, dez 2009)

Antiescravismo e epidemia: “O tráfico dos negros considerado como a causa da febre amarela”, de Mathieu François Maxime Audouard, e o Rio de Janeiro em 1850. Kaori Kodama (vol.16, no.2, Jun 2009)

A epidemia de gripe espanhola: um desafio à medicina baiana, artigo de Christiane Maria Cruz de Souza (vol.15, no.4, dez 2008)

O Carnaval, a peste e a ‘espanhola’. Artigo de Ricardo Augusto dos Santos (v.13, n.1, jan./mar. 2006)

A gripe espanhola em Salvador, 1918: cidade de becos e cortiços. Artigo de Christiane Maria Cruz de Souza (vol.12, no.1, abril 2005)

Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro, artigo de Adriana da Costa Goulart (v. 12, no.1, abr 2005) 

A cidade e a morte: a febre amarela e seu impacto sobre os costumes fúnebres no Rio de Janeiro (1849-50) – Cláudia Rodrigues (vol.6, no.1, Jun 1999)

E ainda, na revista HCS-Manguinhos, artigos em inglês e espanhol:

La “cultura de la sobrevivencia” y la salud pública internacional en América Latina: la Guerra Fría y la erradicación de enfermedades a mediados del siglo XX, artigo de Marcos Cueto (vol.22, no.1, mar 2015)

Curing by doing: la poliomielitis y el surgimiento de la terapia ocupacional en Argentina, 1956-1959., artigo de Daniela Edelvis Testa (vol.20, no.4, dez 2013)

Las epidemias de cólera en Córdoba a través del periodismo: la oferta de productos preservativos y curativos durante la epidemia de 1867-1868., artigo de Adrián Carbonetti e María Laura Rodríguez (vol.14, no.2, jun 2007) 

El rastro del SIDA en el Perú, artigo de Marcos Cueto (vol.9, 2002)

Caponi, Sandra. Lo público y lo privado en tiempos de peste. Jun 1999, vol.6, no.1