Setembro/2013
Flávia Machado, especial para o Blog de HCS-Manguinhos
Aos 25 anos do SUS, o tamanho do buraco da falta de médicos país afora ficou explícito na demanda apresentada pelos municípios que se inscreveram no programa Mais Médicos, através da chamada do governo: segundo o Ministério da Saúde, 3.510 municípios inscritos apontaram a necessidade de 15.460 médicos para completar seus quadros na atenção básica do Sistema Único de Saúde (SUS).
O foco recai sobre 1.582 áreas prioritárias, sendo 1.290 municípios de alta vulnerabilidade social, 201 cidades de regiões metropolitanas, 66 cidades com mais de 80 mil habitantes vivendo na pobreza e 25 distritos de saúde indígena.
Em cinco estados brasileiros, há menos de um médico por mil habitantes. Em 1.900 cidades, a proporção é menor que um médico para cada três mil pessoas, e outras 700 cidades não têm nenhum médico permanente.
Dos 16.530 médicos com registro profissional do Brasil que haviam se cadastrado inicialmente no sistema do Mais Médicos, apenas 938 assinaram o termo de compromisso e homologaram sua participação no programa, o que representa 5,6% deste total.
Dos 701 municípios excluídos por estes profissionais na inscrição, 84% deles estão no interior do Norte e do Nordeste, em regiões com 20% ou mais de sua população vivendo em situação de extrema pobreza. A maioria (68%) destes 701 municípios apresenta índices de desenvolvimento humano (IDH) muito baixo e baixo, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
Os cerca de 4 mil médicos que virão de Cuba através do acordo assinado entre o Ministério da Saúde e a Organização Panamericana de Saúde (Opas/OMS) deverão atuar prioritariamente nestes municípios mais carentes de atenção primária.
Carreira, competência e mercantilização
De acordo com Mário Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP e coordenador da pesquisa Demografia Médica no Brasil, a baixa adesão dos médicos, tanto brasileiros quanto estrangeiros, no início da chamada, revela a ausência de uma política que beneficie os profissionais da saúde que optam pela carreira pública.
O aumento da concentração de médicos no setor privado e a formação voltada para uma “medicina guiada pelo imperativo mercantil e tecnológico” também são, segundo ele, fatores que levam à falta de médicos em certas regiões e especialidades.
“Não haverá solução fácil e definitiva sem mudanças estruturais no sistema de saúde, sem mais financiamento público, sem presença do Estado, e sem reforma profunda na formação de novos médicos”, disse, em entrevista ao Cebes reproduzida pelo blog de HCSM.
O pesquisador Carlos Henrique Assunção Paiva, do Observatório História e Saúde (COC/Fiocruz), concorda com Scheffer. Para ele, o aumento da força de trabalho médico não garante que antigas distorções sejam suficientemente sanadas. “É chegado o momento de um salto. E que esse salto não seja feito à luz das velhas formas, em que prevalecem soluções de corte normativo e vertical. Estamos diante de contexto em que somente o debate – difícil, é certo – entre os diversos atores do campo permitirá a construção de soluções institucionais duradouras”, afirma Paiva, que é editor da seção Livros & Redes de História, Ciências, Saúde – Manguinhos.
Questiona-se se os médicos cubanos estariam preparados para atuar na nossa realidade. Para o médico sanitarista Reinaldo Guimarães, sim:
“Acredito que os médicos cubanos talvez não sejam peritos em ‘procedimentos’ de última geração – nem os realmente úteis, nem os inúteis ou francamente prejudiciais. Entretanto, desconfio que a maior parte dos médicos brasileiros também não seja, embora atualmente talvez almejem sê-lo. Mas os médicos cubanos não estão entre nós como ‘procedimentólogos’, mas como profissionais no campo da atenção primária – promoção, prevenção e cuidados básicos de saúde. E, nesse terreno, creio que eles têm muito a nos ensinar.”
A opinião é compartilhada pela pesquisadora Joseane Costa, da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz e da Universidade Federal do Pará. Para ela, trazer médicos de fora para atender a população é um grande avanço, “já que o modelo americanizado de formação médica no Brasil só visa o lucro e vê a saúde como mercadoria”.
Para Joseane, o nome do programa não deveria ser “Mais Médicos” e sim “Mais Cuidado”: “Não precisamos só de médicos, mas de vários profissionais de saúde envolvidos no cuidado e na atenção em saúde. Mais enfermeiros, mais nutricionistas, mais fisioterapeutas, mais psicólogos, mais estrutura. Mais prevenir do que remediar. E disso os cubanos entendem muito bem.”
A bióloga Jacqueline Leta, do Departamento de Bioquímica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que coordena o projeto “A pesquisa nos principais Hospitais Universitários brasileiros: realidade ou modelo ainda em implantação?”, também relaciona a falta de médicos nas especialidades ligadas à atenção básica com uma tendência de mercantilização da profissão.
“Minha visão parte da perspectiva de um Hospital Universitário, mas noto que os médicos em formação atualmente estão mais preocupados em escolher uma especialidade médica que lhes dê melhor retorno financeiro do que propriamente salvar vidas. O espírito de cuidar do ser humano aparece em segundo plano e se tornou quase que uma visão romântica”, afirma.
Para Ligia Bahia, professora do Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o Programa Mais Médicos tem o mérito de procurar responder ao problema da interiorização de profissionais de saúde, mas não enfrenta as desigualdades estruturais em saúde no Brasil.
“É necessário que a saúde seja encarada como uma política de desenvolvimento social e não apenas como apêndice de programas focalizados de combate à miséria. Objetivamente é preciso que as universidades se comprometam com a fixação desses profissionais, alternando o padrão de recrutamento e formação de estudantes e estendendo suas atividades no sentido do apoio permanente às equipes que trabalham em áreas mais remotas”, recomenda Ligia, em entrevista ao blog de HCSM.
A professora defende a criação de carreiras no SUS: “É hora de voltar a debater o tema com a devida coragem de superar a trágica condição do ‘finge que paga e finge que trabalha’.”
Tira daqui, põe ali?
Outra preocupação em relação ao programa Mais Médicos é se os profissionais importados farão falta para as populações de seus países de origem.
Em entrevista ao blog de HCSM, Lincoln Chen, presidente do Conselho Médico Chinês e fundador da Aliança Mundial pela Força de Trabalho em Saúde, ligada à ONU, explica que alguns países como Cuba e Índia produzem médicos para exportação – apesar de a Índia sofrer de déficit em áreas rurais. Ele alerta que a importação de médicos de países em desenvolvimento que não tenham profissionais excedentes pode gerar carências de recursos humanos que lhes são vitais.
“Nós devemos, certamente, promover segurança em saúde em todos os países, mas também não devemos bloquear o direito de alguém de migrar em razão de oportunidade econômica. Uma questão fundamental é como foi financiada a formação do médico migrante. Se a educação foi pesadamente subsidiada por recursos públicos, então a evasão do profissional é mais do que uma perda médica, mas uma perda de investimentos de tempo e dinheiro de um país para produzir mão-de-obra para servir a seus próprios cidadãos”, pondera.
Lincoln Chen também ressalta a importância da avaliação das competências dos médicos estrangeiros para o contexto brasileiro.
“Uma questão chave é qualidade – se os médicos importados têm competências técnicas, linguísticas e culturais para servir a população do Brasil. Argumentos serão abstratos se as competências não forem medidas e avaliadas. Outro aspecto a ser avaliado é o país e a instituição de origem dos profissionais”, afirma.
Chen acrescenta que o Brasil não é o único país a importar profissionais de saúde para suprir a falta e a má distribuição de médicos e tampouco o único onde as entidades médicas se opõem a estas importações. “Muitos países importam médicos, assim como enfermeiros e outros profissionais de saúde. Um quarto dos médicos em atividade nos EUA são importados, por exemplo. Muitos servem em áreas onde as vagas não foram preenchidas por graduados nos EUA”, exemplifica.
(Edição Marina Lemle)
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