Renato Kehl e Roquette-Pinto: controvérsias na eugenia brasileira

Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos


As controvérsias entre Renato Kehl e Edgard Roquette-Pinto e os diálogos internacionais que envolveram a eugenia brasileira nas primeiras décadas do século XX são o tema do professor Vanderlei Sebastião de Souza, do Departamento de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste, Paraná, em artigo na atual edição de HCS-Manguinhos. Partindo dos projetos eugênicos e das controvérsias entre estas duas lideranças do movimento eugênico brasileiro, o historiador investiga o contato deles com os movimentos eugênicos de países como EUA, Alemanha, Inglaterra, Suécia e Noruega.

“Meu interesse é demonstrar que as conexões desses pesquisadores com a chamada ‘linha dominante’ do pensamento eugênico foram mais amplas e difusas do que o imaginado inicialmente. O resultado foi a conformação da eugenia brasileira em diferentes sentidos, o que ampliou a circulação internacional de ideias e extrapolou as fronteiras da ‘eugenia latina’”, conta. O artigo A eugenia brasileira e suas conexões internacionais: uma análise a partir das controvérsias entre Renato Kehl e Edgard Roquette-Pinto, 1920-1930 compõe o número especial “A eugenia latina em contexto transnacional” (vol.23, supl.1, dez. 2016). Leia entrevista de Vanderlei Sebastião de Souza ao Blog de HCS-Manguinhos.

No artigo você afirma que nos anos 1930, no auge das discussões sobre o processo de imigração e colonização do território brasileiro, os eugenistas se dividiam entre a aceitação de um país mestiço ou a substituição dos brasileiros por europeus. Quais as principais características do movimento eugênico brasileiro?

A eugenia no Brasil não deve ser vista como um movimento homogêneo, coerente ou linear, tanto do ponto de vista teórico quanto ideológico.  Fruto da iniciativa de médicos, higienistas, antropólogos, jornalistas e educadores de diferentes matizes políticas, sociais ou científicas, o movimento eugênico se constituiu como um campo complexo e fragmentado, cuja principal característica foi justamente o seu caráter multifacetado ou polimorfo, apresentando projetos e ideologias bastante diversificadas. Em linhas gerais, a eugenia brasileira se reconfigurou de acordo com as ideologias ou teorias científicas hegemônicas no país, conciliando uma série de visões sobre as teorias médicas, a identidade nacional e o processo de formação da população brasileira. Não é por acaso que, no Brasil, a eugenia foi inicialmente associada ao movimento sanitarista e as preocupações com a reforma do meio, conectando-se estreitamente aos princípios teóricos oriundos do evolucionismo lamarckista, sobretudo da tese que reafirmava a herança dos caracteres adquiridos. Deste modo, a própria eugenia foi apropriada entre os brasileiros como sinônimo de higiene e de saúde pública, indistintamente incorporada aos projetos de reforma sanitária que emergiram no país no início do século XX.

Mesmo quando a eugenia foi diretamente associada às questões raciais e aos dilemas que a nacionalidade mestiça representava, especialmente a partir dos anos 1920, os eugenistas dividiam-se entre a aceitação ou a negação da miscigenação racial como fator de regeneração ou integração da população brasileira. De outro lado, mesmo partindo de visões distintas, os eugenistas aceitavam a tese do branqueamento e faziam a defesa da imigração europeia como forma de transformação da nacionalidade brasileira. No que diz respeito aos projetos mais radicais, o movimento eugênico brasileiro também foi bastante antagônico, sobretudo quando falamos de projetos de reprodução humana, de controle matrimonial, das políticas de esterilizações eugênicas e do estabelecimento de rígidas barreiras raciais. Embora essas medidas tenham oficial e institucionalmente encontrado pouca ressonância no país, é sabido que os eugenistas mais alinhados com o racismo científico, como Renato Kehl, por exemplo, defendiam políticas e práticas radicais de controle da reprodução humana e da miscigenação racial, estimulando um amplo debate sobre a segregação e a purificação racial baseado nas agendas da chamada “eugenia negativa” e das teorias da genética mendeliana, aos moldes do que na época já vinha sendo implantada nos Estados Unidos e em países do norte da Europa.

O texto cita Renato Kehl, Edgard Roquette-Pinto, Octávio Domingues e Toledo Piza Júnior como líderes eugenistas que adotaram a teoria mendeliana. Como esta teoria influenciou a eugenia no Brasil?

Embora o chamado evolucionismo neolamarckista tenha encontrado muitos adeptos no Brasil, procurei demonstrar que as principais lideranças do movimento eugênico brasileiro eram adeptas do evolucionismo e da genética mendeliana. Esse, aliás, é um tema ainda pouco conhecido e que sempre causa interpretações e análises apressadas na historiografia brasileira. Isso ocorre, em grande medida, pelo fato dos movimentos eugênicos mais extremados, como dos Estados Unidos, Alemanha e outros países do norte da Europa, terem adotado um racismo baseado em princípios mendelianos. Para estes, o processo evolutivo seria independente das reformas do meio, da educação ou de princípios externos aos indivíduos e seus genes. No caso do Brasil, entretanto, a genética mendeliana foi apropriada de diferentes maneiras, seja a partir de interpretações mais “duras” sobre os processos evolutivos, num estreito diálogo com a eugenia e a genética anglo-saxônica, seja em sentido oposto ao do racismo científico, procurando ressaltar a possibilidade de uma miscigenação eugênica. Para estes últimos, entre os quais se encontravam Edgard Roquette-Pinto e Octávio Domingues, a mistura racial deveria ser vista como processos de combinação de caracteres e não de formação de anomalias genéticas, como pregavam eugenistas mendelianos como Renato Kehl. Neste sentido, enquanto o mendelismo de Kehl e Toledo Pizza Junior partia de uma forte contestação à mistura racial e o incentivo à segregação, uma vez que sociedades racialmente “híbridas” eram potencialmente inferiores, eugenistas mendelianos como Roquette-Pinto, Froes da Fonseca e Octávio Domingues desenvolveram um discurso eugênico que, de um lado, absolvia os mestiços brasileiros das duras condenações deterministas e, por outro, opunha-se ao racismo científico e à segregação racial.

Renato Kehl (1889-1974) e Edgard Roquette-Pinto (1884-1954) estabeleceram um amplo debate com a eugenia, a genética e a antropologia física norte-americana e alemã. Como esse debate internacional mobilizou ou influenciou esses eugenistas e o próprio movimento eugênico brasileiro?

Talvez o aspecto mais importante desse debate seja mesmo o deslocamento da eugenia brasileira de uma tradição “latina” e neolamarckista para um circuito internacional mais amplo, que envolvia a eugenia anglo-saxônica e a tradição mendeliana. Conforme procuro demonstrar nessa pesquisa, a conexão dos eugenistas brasileiros com essa tradição científica foi recorrente e ajudou a reconfigurar o movimento eugênico. Isso era possível perceber tanto na publicação de seus livros ou em artigos publicados na imprensa brasileira, quanto em suas correspondências pessoais ou institucionais, nas quais o debate com a eugenia anglo-saxônica e mendeliana apareciam frequentemente. Além disso, a tradução e a divulgação das obras desses eugenistas e antropólogos estrangeiros eram realizadas periodicamente, sobretudo no Museu Nacional, por meio de cursos ministrados por Roquette-Pinto e Fróes da Fonseca, e no Boletim de Eugenia, periódico fundado e dirigido por Renato Kehl justamente para difundir o ideário eugênico. Contudo, conforme destaquei anteriormente, esse debate e as conexões com a eugenia internacional mobilizou distintamente os projetos defendidos por Renato Kehl, Octávio Domingues e Roquette-Pinto. Neste sentido, argumento que a apropriação feita pelos autores brasileiros estava relacionada ao modo como encarravam o significado da miscigenação racial e a formação de uma nação mestiça nos trópicos. Ao invés de analisarmos a adesão coerente ou do uso fiel das teorias científicas, é preciso compreender que as apropriações de ideias e conceitos obedecem aos projetos mais amplos de intervenção no mundo público, devendo ser analisados a partir da posição que estes autores ocupam num determinado campo intelectual, bem como dos interesses sociais e políticos em jogo.

O que caracteriza a “eugenia latina” e o que a diferencia da anglo-saxã? Por que a eugenia latina é vista como mais “suave” ou menos radical?

O conceito de “eugenia latina” ficou mais conhecido depois da publicação do livro The hour of eugenics (A hora da eugenia), publicado no início dos anos 1990 pela historiadora Nancy L. Stepan, e traduzido no Brasil em 2005. Nesta obra, a autora analisou o movimento eugênico latino-americano destacando a forte ligação dos eugenistas da América Latina com a tradição latina de pensamento científico, representada especialmente pelo evolucionismo neolamarckista francês. Ao contrário do evolucionismo mendeliano predominante em países anglo-saxônicos, os adeptos do neolamarckistas partiam da compreensão de que o meio era importante no processo de transformação da herança biológica, uma vez que ao longo do processo evolutivo os indivíduos herdariam características do meio, o que projetava uma visão mais otimista sobre o impacto das reformas sociais e do meio na formação das futuras gerações. Neste sentido, a eugenia latina é vista como um modelo mais “suave” porque permitia pensar o processo regenerativo das características raciais humanas a partir da melhoria das condições de vida, seja por meio das reformas médicas e sanitárias, seja pela educação.

De outro lado, a “eugenia latina” também se caracterizava pela tradição católica que ligava os eugenistas da América Latina, e dos países latinos da Europa, como Portugal, Espanha, França e Itália, que mantinham uma forte influência sobre a cultura e a ciência latino-americana. De maneira geral, a tradição católica mantinha uma série de restrições sobre os processos de intervenção que a ciência e o Estado propunham à educação sexual e matrimonial e, especialmente, ao controle da reprodução humana. Para a igreja católica, estes assuntos eram de ordem divina e caberiam somente à igreja debate-los ou regulamentá-los. Deste modo, uma certa moral católica contribuiu para frear os projetos mais radicais de intervenção eugênicas, o que possibilitou que os próprios eugenistas, com poucas exceções, evitassem a defesa pública de medidas extremadas como a esterilização, a eutanásia, o aborto e o controle matrimonial.

Como a eugenia brasileira se coloca no contexto das outras eugenias?

A historiografia vem produzindo um consenso segundo o qual os movimentos eugênicos precisam ser entendidos contextualmente, levando em consideração as ideologias sociais e políticas predominantes, as tradições científicas e culturais mais amplas de cada país ou região na qual se desenvolveu. Neste caso, embora falemos de eugenia latina em oposição a eugenia anglo-saxã, entendo que estes conceitos não são suficientes para entender o que foi a eugenia brasileira em comparação com outras eugenias, uma vez que, conforme argumentamos, os eugenistas brasileiros também dialogavam com outras tradições científicas colocadas além do mundo latino, o que tornou o movimento eugênico bastante dinâmico e heterogêneo. Neste artigo recentemente publicado na Revista História, Ciência, Saúde-Manguinhos, procurei justamente demonstrar que o conceito de eugenia latina precisa ser repensado, pois impede que compreendamos a inserção e a conexão dos eugenistas brasileiros num debate mais amplo que mobilizou os eugenistas mundo afora. No meu entendimento, a eugenia brasileira deve ser vista tanto como resultado do contexto nacional e do seu diálogo com os problemas brasileiros e com a tradição latina, mas também como resultado da conexão transnacional, uma vez que o debate científico sobre evolução humana, raça e identidade rompeu as fronteiras nacionais e se internacionalizou rapidamente a partir do início do século XX. Neste sentido, se é verdade que a eugenia brasileira foi mais “suave”, refletindo o que foi o movimento eugênico do mudo latino, não é menos verdade que medidas mais extremadas também foram abertamente defendidas no Brasil, como é possível perceber pela atuação de figuras como Renato Kehl, cujo diálogo e simpatia pela eugenia nazista encontrou poucos opositores entre os brasileiros.

Leia em HCS-Manguinhos:

A eugenia brasileira e suas conexões internacionais: uma análise a partir das controvérsias entre Renato Kehl e Edgard Roquette-Pinto, 1920-1930, artigo de Vanderlei Sebastião de Souza (vol.23, supl.1, dez. 2016)

Ciência e miscigenação racial no início do século XX: debates e controvérsias de Edgard Roquette-Pinto com a antropologia física norte-americana, artigo de Vanderlei Sebastião de Souza (vol.23, no.3, jul./set. 2016)

Sumário da edição especial “A eugenia latina em contexto transnacional” (vol.23, supl.1, dez. 2016)

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