Uma crítica aos atuais comitês de ética na pesquisa no Brasil

Abril/2014

Prezados editores,

A historiografia da saúde na América Latina, nos últimos decênios, passa necessariamente pelas páginas de História, Ciências, Saúde – Manguinhos.Recentemente, passa também pelo espaço virtual dessa revista formidável. Nesse sentido, creio que é alvissareira a iniciativa de seus editores: abrir-nos um espaço no blog sobre as questões ligadas aos chamados comitês de ética na pesquisa.

Assistimos, até agora de modo um tanto hesitante e pouco combativo, ao predomínio crescente de instâncias burocráticas sobre a autonomia do pesquisador, a exemplo de demandas por montanhas de relatórios de “pesquisa” assim como de pressões produtivistas. O modelito das ciências biomédicas tem gerado “efeitos não antecipados”, como ocorre com a epidemia de autorias múltiplas, em tudo idênticas, até no reduzido número das páginas dos artigos, ao que se verifica, tradicionalmente, na área experimental da medicina. Ninguém quer condenar ninguém, mas é tempo de cautela.

Exemplo recente, sem dúvida dos mais preocupantes, é a atuação dos chamados “comitês de ética”, relacionados, em diferentes instâncias, à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), cujos membros são indicados pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), do Ministério da Saúde (MS). O CNS tem a atribuição legal de estabelecer diretrizes éticas para a pesquisa em saúde, que, lamentavelmente, uma vez regulamentadas, ultrapassaram o terreno dos ensaios clínicos (clinical trials) e experimentais. Suas atribuições têm sido interpretadas equivocadamente pela própria CONEP como um mandato para impor normas e exigências excessivas, que cerceiam as atividades de pesquisa científica em geral, particularmente no terreno de humanas.

Minha preocupação volta-se particularmente para o campo das ciências humanas em saúde (seja da sociologia, antropologia, história, ou da psicologia social), cujos estudos ficam num território fronteiriço, entre as humanidades e o campo biomédico. A meu ver, esse campo – em que se situam, por exemplo, os estudos publicados em História, Ciências, Saúde – Manguinhos não tem recebido a devida atenção das associações de pós-graduação, diante das incursões indevidas dos comitês de ética. As pesquisas no campo da saúde, incluindo-se até aquelas no terreno das ciências sociais e humanas (a antropologia da saúde, a história da saúde etc.), tornaram-se objeto de intrincado e inaceitável processo de avaliação pelos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs), ligados à CONEP. Suas normas classificam as pesquisas de nossas áreas dentro da mesma linha rígida das ciências biomédicas, como se fossem estudos clínicos, pesquisas sobre genética, uso de placebo ou experimentos laboratoriais com humanos. O CNS criou em 2011 a chamada Plataforma Brasil, base de dados que exige o registro de pesquisas “envolvendo seres humanos”, uma investidura com características praticamente universais, que torna a citada Plataforma uma espécie de Minotauro da ciência brasileira.

Alguns temas de pesquisa social em saúde merecem comentário. Estudos sobre doadores e receptores de sangue, ou sobre a transfusão de sangue e hemoderivados, têm de ser conduzidos com estrita observância de padrões éticos. No entanto, esses requisitos serão diferentes conforme a pesquisa: (a) se dirija às políticas públicas no setor; (b) contemple uma etnografia sobre a dádiva; ou ainda (c) se refira ao uso de hemoderivados na preservação da saúde humana. A rigor, apenas os projetos de pesquisa do terceiro tipo deverão ser submetidos a um Comitê de Ética na Pesquisa, vinculado à CONEP e à Plataforma Brasil. Contudo, os dois projetos anteriores não teriam de sujeitar-se à normatização vigente, mas sim, sem prejuízo de requisitos de caráter ético, a comitês em ciências humanas e sociais. Os exemplos citados, no caso das políticas de sangue e hemoderivados, são indicadores da complexidade dos próprios projetos de pesquisa “associados a um mesmo tema geral”, mas que exigem avaliação ética distinta, em cada caso.

As implicações para a pesquisa no campo da história das doenças ou da história oral são preocupantes. Imaginemos dois outros exemplos: (a) uma pesquisa sobre as representações coletivas ou sobre depoimentos colhidos entre pacientes internados em leitos de longa permanência ou de cuidados continuados; (b) uma pesquisa sobre memórias ou histórias de vida de velhos sanitaristas dos tempos de Getúlio Vargas. Em ambos os casos, o pesquisador terá de submeter seu projeto a um dos CEPs que compõem a CONEP. (A rigor, terá de “submeter-se”, porque sua própria vida acadêmica veio a depender das tramitações de seus projetos junto ao Comitê).

Entre os quesitos que compõem o “Detalhamento do Estudo”, apresentado ao CEP, requer-se, em um dos quadros com preenchimento obrigatório, a explanação sobre “a metodologia proposta”. Se tomarmos os dois exemplos citados (como simples ilustração), a possível utilização de entrevistas semi-estruturadas exigiria do pesquisador que submetesse seu procedimento metodológico à aprovação “prévia” dos questionários com perguntas abertas e fechadas. Isto é inaceitável. Para tanto, cabem as instâncias acadêmicas de julgamento, qualificação e aprovação dos projetos, das dissertações, das teses. Gostaria de mencionar brevemente um estudo da maior importância entre nós, que possivelmente jamais seria publicado, hoje, com a pertinência e relevância que veio a ter. A observação participante constava da pesquisa realizada nos idos de 1940 em estudo clássico sobre os tuberculosos por um pesquisador de ética inatacável — o sociólogo Oracy Nogueira. Sua pesquisa teria sido, hoje, asfixiada pela preocupação obsessiva – que emana das normas da CONEP –, com “riscos causados” pelos procedimentos metodológicos ou diretamente pelo pesquisador. O Professor Oracy, ele próprio um tuberculoso, jamais teria tido seu projeto aprovado em nossos atuais comitês, em função da impossibilidade de “prever” possíveis riscos a seus companheiros entrevistados na “estação de cura” de Campos do Jordão[1]. Contudo, seu estudo constituiu um precioso relato sobre “as experiências sociais e psíquicas do tuberculoso pulmonar” e foi um veículo igualmente precioso para a educação sanitária antituberculosa. O modo ético de proceder não provinha de “protocolos”, mas sim de nossa própria formação intelectual, sem interferências de instâncias burocráticas. Essas instâncias de avaliação e normatização, que hoje recaem sobre as áreas de ciências humanas e sociais da saúde, constituem uma interferência epistêmica indevida sobre a conduta na pesquisa, fruto da hegemonia que se firmou e transbordou das fronteiras do saber biomédico.  Refiro-me, por certo, à epistemologia/epidemiologia dos riscos, estas sim, geradoras de “riscos” inadmissíveis para o avanço da pesquisa científica na área da saúde, produtos da rigidez burocrática, engessadora e não raro inquisitorial dos comitês. Se “toda a pesquisa envolvendo seres humanos envolve risco” (Res. CNP 196/96-V) pode-se inferir o poder absurdo e imprevisível que tal afirmação confere aos comitês associados à Plataforma Brasil.

A confusão entre metodologia e ética surpreende e revela despreparo diante das circunstâncias da conduta na pesquisa. (Lembro aos interessados e, fraternalmente, aos próprios membros da CONEP, a leitura de um livro incomparável sobre as aventuras e desventuras dos aspectos éticos da pesquisa, editado há quase meio século por Paul A. Freund, professor emérito de Harvard. A obra é atualíssima.[2] A pesquisa não pode ser avaliada fora dos padrões já instaurados nas inúmeras instâncias universitárias e pelas agências de fomento como CNPq, CAPES e Fundações de Amparo à Pesquisa, que exercem, há décadas, uma constante avaliação das pesquisas em nossas áreas de humanas e sociais da saúde. A ingerência absolutamente indevida se revela em um caso particular de engessamento burocrático: uma vez aprovado pelo Comitê de Ética, o modelo de questionário, ou a adoção deste ou daquele procedimento metodológico, fica “congelado”, sem possibilidade de revisão – salvo se o Projeto de Pesquisa for novamente submetido aos membros do Comitê. Termos de consentimento, assinados por participantes de ensaios clínicos, no mundo da ciência médica norte-americana, foram impostos indiscriminadamente, pelas normas brasileiras, a toda pesquisa científica. Há mais: é preciso que orçamento e cronograma sejam submetidos para aprovação, duplicando, nesse particular, julgamentos de agências de fomento ou de colegiados de unidades de pós-graduação. Pesquisas não podem ser iniciadas, nem mesmo em fase piloto, sem a aprovação dos membros do CEP.

Esta rigidez é incompreensível e significa, para estudos de nossas temáticas, uma camisa de força. Não é difícil prever os resultados prejudiciais ao avanço do conhecimento científico em nosso campo. Por exemplo, estudos baseados na pesquisa-ação tornam-se impossíveis; pesquisas que contemplem a observação participante ou entrevistas não estruturadas são tolhidas; a própria rejeição do imprevisto ou do acaso, como momentos cruciais de descoberta e insights, torna-se um impeditivo à livre criação ou à produção das ciências sociais da saúde. Não só isso. É patético imaginar que a produção de um pequeno grande livro, como A aventura antropológica: teoria e pesquisa, uma coletânea que Ruth Cardoso organizou há vários anos (quem não o leu, com evidentes benefícios para sua própria pesquisa?) seria hoje impensável.[3] A rigor, as normas e regulamentos hoje vigentes pela Plataforma Brasil teriam inviabilizado as pesquisas de caráter sociológico e antropológico que marcaram nossa literatura, pela qualidade e solidez, nos últimos 50 anos no Brasil, seja no campo da saúde ou em tantas outras temáticas do social. Creio que é o momento de alteração do próprio nome da Plataforma, que deveria ser renomeada Plataforma Brasil Médico, para indicar seu alcance circunscrito a temas da biomedicina como ensaios clínicos e estudos experimentais com humanos.

As normas em vigor, emanadas da CONEP, ilustram, infelizmente, o cabal desconhecimento e desconsideração das condições e condutas inerentes à pesquisa em ciências sociais e humanas. Essas requerem a garantia de liberdade e criação, conferidas pela “ética da aventura” e do artesanato que preside à conduta na pesquisa nas ciências do comportamento humano.

A intervenção da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) e da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) permitiu, nos últimos meses, um diálogo com a CONEP e o MS visando à necessária demarcação de limites entre a atual regulamentação da ética da pesquisa em ciências biomédicas (Resolução n.196/1996 do CNS) por um lado e, por outro, as exigências éticas na pesquisa em ciências humanas e sociais. Sob esse ângulo, já avançamos um pouco, delimitando os aspectos legais e éticos que diferenciam os distintos “mundos da pesquisa”. Está em discussão, no momento, a criação de um sistema específico de avaliação ética da pesquisa, no interior do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), que seria alternativo e independente, em relação ao sistema atual, do MS. Inúmeras discussões têm sido realizadas em Brasília, com representantes da ANPOCS e de várias outras associações das áreas de humanas e sociais.

No entanto, e é este um objetivo central da presente intervenção, devemos chamar a atenção dos representantes das várias associações de pesquisa para que esse sistema alternativo inclua, necessariamente, pesquisas de ciências sociais “em saúde”, retirando-as da égide das resoluções da CONEP/Plataforma Brasil. As ciências sociais da saúde são, rigorosamente, frutos de pesquisas sociais. Como tais, do ponto de vista da epistemologia e das metodologias da pesquisa, uma distinção entre “o social da saúde” e o “social como fenômeno social total” (conforme lembraria George Gurvitch), seria artificial, impensável e indefensável.[4]

Instituições que abrigam unidades ou linhas de pesquisa nos “dois mundos” das biomédicas e das humanas e sociais, estariam, portanto, dentro do que aqui se defende, instados a comportar dois comitês, associados a duas diferentes Plataformas – a Brasil Médico e a Brasil Humanas e Sociais, independentes e autônomas. Ouvida a coordenação de pesquisas ou órgão correspondente na instituição, que atuará como um conselho consultivo, o pesquisador terá o livre direito de escolha de um comitê de ética de pesquisa para avaliar sua proposta, seja um comitê vinculado à Plataforma Brasil Médico, seja à Plataforma Brasil Humanas e Sociais. Essas nos parecem propostas justas e inadiáveis para o desenvolvimento do campo científico no Brasil, livre de injunções burocrático-autoritárias impensáveis nos dias de hoje.

 

luizantonio

Luiz Antonio de Castro Santos

Professor Associado, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

 


[1] Oracy Nogueira, Vozes de Campos de Jordão: experiências sociais e psíquicas do tuberculoso pulmonar no Estado de São Paulo. [1ª edição, 1950]. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 2010, 2ª edição.
[2] Paul A. Freund (Ed.), Experimentation with human subjects, New York, George Braziller, 1970.
[3] A aventura antropológica: teoria e pesquisa, organização Ruth Cardoso, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986.
[4] Jean Cazeneuve, “La sociologie de Georges Gurvitch”, Revue française de sociologie, Paris, v.7, n.1, p. 5-13, 1966.

Leia a carta em inglês

Contribuições para o debate:

Vamos discutir os comitês de ética na pesquisa?
Por sugestão do professor Luiz Antonio de Castro-Santos, o blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos abre um espaço de discussão, críticas e comentários sobre as normas que regulam as pesquisas no Brasil hoje em dia.
Luiz Fernando Dias Duarte: cientistas sociais estão presos em camisa de força burocrática
Para antropólogo, submissão das pesquisas em ciências sociais e humanas à lógica biomédica é descabida e autoritária.

Maurício Reinert: ‘O Brasil precisa de mais, e não menos, pesquisa’
Para professor de Administração da Universidade Estadual de Maringá, submissão de pesquisas em ciências sociais ao Conep fere autonomia universitária.

Flavio Edler: comitês de ética inibem liberdade de pesquisa
Historiador compara sanha reguladora à Real Mesa Censória dos tempos coloniais.

Luciano Mendes de Faria Filho: anonimato para quê?Para o professor de Educação da UFMG, o anonimato nas pesquisas em ciências humanas mais garante o apagamento da autoria, do pensamento e da expressão dos setores populares do que a fidedignidade dos dados.

Como citar este post [ISO 690/2010]:
Uma crítica aos atuais comitês de ética na pesquisa no Brasil. Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. [viewed 10 April 2014]. Available from: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/uma-critica-aos-atuais-comites-de-etica-na-pesquisa-no-brasil/