Mais médicos reforça a separação entre medicina dos ricos e dos pobres

Setembro/2013

João Bosco Botelho, renomado cirurgião cancerologista de Manaus, professor titular aposentado da Universidade Federal do Amazonas, professor adjunto de História da Medicina e Ética Médica da Universidade do Estado do Amazonas e Doutor Honoris Causa pela Universidade de Toulouse, critica o Programa Mais Médicos, verbalizando o ponto de vista de muitos de seus pares amazonenses. Propõe medicina como carreira pública com a mesma abrangência que tem a magistratura. Leia a entrevista:

O que acha da entrada de médicos estrangeiros para atuar no país? Como avalia a prática da medicina realizada nos grandes centros, e nas periferias e cidades do interior?

Os médicos estrangeiros prestarão assistência em áreas com baixo IDH, sem evidência prévia de que estão preparados, técnica e emocionalmente, e a maior parte dessas comunidades e/ou pequenas cidades, secularmente abandonadas pelo Poder Público, não dispõem sequer de estrutura ambulatorial para atendimento médico primário. Acredito serem necessárias análises em três planos.

O primeiro são as históricas diferenças entre assistência médica prestada a pobres e a ricos. As práticas médicas advindas dos saberes acadêmicos, aqui denominada medicina-oficial, tendo o médico como seu principal agente, além de ser a mais recente, alcança somente parcela minoritária da população. Incontáveis pessoas, nos quatro cantos do mundo, nascem, vivem e morrem sem nunca terem visto um médico ou entrado num hospital, com qualidade de vida e longevidade de fazer inveja a pesquisadores de biotecnologia.

Nesse sentido, é possível resgatar historicamente relações do conhecimento acumulado com as práticas de cura, de todos os matizes, e a boa prática, entendida pelo senso comum como a que oferece bons resultados à vida pessoal e coletiva. Sob esta ótica é possível abordar as práticas de cura da medicina-divina, ancorada nos templos, tendo como agentes, sacerdotes e sacerdotisas; a medicina-empírica praticada por parteiras, erveiros, encantadores e benzedores, homens e mulheres sem escolaridade até hoje, em muitas linguagens-culturas respeitados e festejados; e a medicina-oficial, muito mais recente. Esta parece ser a única que construiu, desconstruiu e continua a reconstruir propostas teóricas para desvendar as etiologias das doenças em dimensões cada vez menores da matéria, apesar de não ter ainda solucionado o paradoxo fundamental da medicina – em qual dimensão da matéria o ‘normal’ se transforma em doença?

Parece razoável supor que o conhecimento, desde os primeiros registros do médico como ator social, se ajustou à maior inclusão dos curadores que obtinham melhores resultados nos seus procedimentos e, de outro lado, os que não conseguiam o reconhecimento coletivo de sua competência na solução dos problemas a eles propostos. Entre esses dois grupos, as organizações sociais, ao mesmo tempo em que reconheciam o médico como parte das profissões, procuraram identificar, coibir e punir a má prática, estabelecendo critérios de caráter ético que podem ser reconhecidos pela análise histórica. É importante ressaltar que o mau resultado do atendimento médico, desde a Antiguidade, é muito mais noticioso entre ricos do que entre pobres, sem esquecer que os estudantes, desde os primeiro registros, aprendiam nos corpos dos pobres.

Imaginem hoje, hipoteticamente, um bem intencionado estudante de medicina que chega à administração de um hospital de ricos, esse em que o dinheiro público paga muitas contas, e onde as consultas médicas alcançam a cifra de mil, dois mil reais, para pedir para examinar gratuitamente um doente rico. É claro que o inocente estudante será direcionado aos hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS).

Um dos primeiros registros laicos dessa diferença, o rico a receber melhor atenção e cuidados médicos, está contido no Código promulgado pelo rei Hammurabi (1728-1686 a.C), da Babilônia, o primeiro a legislar sobre a prática médica, atribuindo deveres e direitos a seus praticantes, além de estabelecer o valor do pagamento por seus serviços e penalidades pela má prática. Antes de Hammurabi, outros dirigentes legislaram, no Oriente Antigo, sobre as relações sociais do homem, inclusive as de caráter médico. Exemplos são o código do rei Ur-Nammu (2050-2030 a.C.), a coleção de leis de Urukagima, de Lagas, da mesma época, o código do rei Bilalama, de Eshnuma, (1825-1787 a.C.) e o de Lipit-istar, de Isin, (1875-1865 a.C). Os artigos penalizando ou premiando o curador, na mesma coluna daquela concernente às profissões dos barbeiros, pedreiros e barqueiros, revela um elo comum: eram categorias implicadas em conflitos inquietantes para o Estado.

Outra referência significativa é o registro crítico de Platão sobre os médicos que tratavam de modo diferente ricos e pobres. Nova e fundamental etapa na construção de procedimentos éticos atados à busca da saúde, mil anos após o Código de Hammurabi, relaciona-se à Escola de Cós. Sabe-se que das 72 obras contidas no “Corpo Hipocrático”, conjunto de textos produzidos na ilha de Cós, somente 12 foram reconhecidamente escritos por Hipócrates. As terapêuticas ficaram a partir de então mais livres de deuses e deusas, firmando-se o propósito de retirar do corpo o excesso do(s) humor(es) desequilibrado(s), por meio de sangrias, suadouros, laxantes, vômitórios e diuréticos. Concomitantemente, o primeiro código de ética médica, Juramento de Hipócrates, com admirável avanço, indicava a necessidade de os bons resultados estarem unidos ao respeito à intimidade e dignidade do doente, ao sigilo e à responsabilidade profissional.

A ordenação ética sob a liderança de Hipócrates (460-375? a.C.) ocorreu no esplendor grego, contemporâneo de Sócrates (468-399 a.C.) e Platão (429-347 a.C). Nesse ambiente de intensa elaboração intelectual nasceu a base teórica da ética na Medicina. Uma das evidências disso está na obra de Platão, no extraordinário Leis (Livro IX, IV d)[1] em que o filósofo expunha as marcantes diferenças entre as práticas médicas para ricos e pobres. De modo satírico, referia-se aos médicos que, ao tratar de pessoas ricas, explicavam detalhadamente a doença e o tratamento e, aos escravos, dedicavam consultas rápidas, sem qualquer explicação.

Essa característica continua a influenciar a formação e a marcar a prática médica em muitos países, inclusive no Brasil, onde predomina a equivocada noção “ser médico = ser rico”. Segundo esta logica, é melhor e mais lucrativo alguns médicos se sujeitarem à operacionalidade de máquinas caríssimas que compõe o arsenal médico-hospitalar, naqueles hospitais em que o dinheiro público paga a maior parte das contas, e onde se cobra uma fortuna por uma consulta, do que aprender a diagnosticar verminoses ou a fazer o parto normal.

Dada a ausência de vontade política do Poder Público de institucionalizar a carreira do médico, a exemplo do que se fez com os magistrados, obrigados a estarem presentes nas pequenas cidades, a construção teórica acima ajuda a compreender, na atualidade, a equivocada pretensão de associar a prática médica à riqueza, nas cidades com melhor IDH, e a prática de segunda nas comunidades pobres. 

Por que o senhor é contra a entrada de médicos de qualquer nacionalidade sem o REVALIDA?

A lógica perversa que acabo de expor talvez tenham servido de elemento catequético, nos anos 1990, para jovens filhos de sindicalistas e/ou militantes dos partidos da esquerda receberem incentivos financeiros para estudar medicina em Cuba. Transcrevo notícia veiculada nas redes sociais a esse respeito (http://www.ptsul.com.br/?doc&mostra&14665):
“PT abre pré-seleção para bolsas de Medicina em Cuba. A Secretaria de Relações Internacionais do PT está organizando o processo pré-seletivo dos bolsistas que estudarão na Escola Latino-Americana de Medicina em Cuba. Desde 1999, o governo cubano oferece estas bolsas através de várias organizações brasileiras, entre as quais o PT. As bolsas cobrem todos os gastos com o curso, alojamento e alimentação, além de incluírem uma pequena ajuda de custo. Ficam a cargo do estudante as passagens aéreas, tanto agora como durante o curso.

A pré-seleção está sendo feita com antecedência, para garantir maior acesso aos candidatos, especialmente aqueles que não ainda precisam providenciar a documentação exigida.

O PT lembra que este é um processo pré-seletivo. A seleção final será feita pelo governo cubano (…) caso (…) realmente ofereça bolsas em 2006 e caso o número de bolsas seja equivalente ao número de pré-selecionados”.

Entre os pré-requisitos definidos por Cuba e pelo PT para participar da pré-seleção destaco o seguinte: “ter no mínimo 2 (dois) anos de filiação partidária e apresentar carta de recomendação de instância partidária”.

Em acréscimo, refiro notícia, até agora não contestada, publicada em O Globo, dia 2.10.2013, página 10, pelo jornalista Ancelmo Gois:

“Cuba libre: um sábio que acompanha as relações entre Brasil e Cuba aposta que este dinheiro que a ilha vai receber pela exportação de médicos para cá vai servir para amortizar um pedacinho da divida dos cubanos com o BNDS. O banco financia a construção do Porto Mariel. A obra vai custar cerca de US$ 1 bilhão, sendo US$ 682 milhões financiados pelo governo brasileiro.”

Finalmente, porque não submeter ao REVALIDA os médicos que desejam trabalhar no programa politiqueiro “Mais Médicos”? Os agentes políticos que induziram a ida a Cuba de jovens encantados com a possibilidade de maior poder social e riqueza estão com medo de que? Os médicos formados em outros países estão ou não preparados, técnica e emocionalmente, para trabalhar em áreas geográficas secularmente abandonadas pelo poder público? Falam ou não a língua portuguesa? Conhecem as características regionais das linguagens orais para poder entender as queixas dos doentes?

Com certeza, houve má avaliação política do projeto por parte de assessores da presidenta, com enorme custo e desgaste político para o governo. Na realidade, já está fazendo água, e muita, de acordo com notícia publicada, hoje, 4.10.2013, no jornal O Globo, página 8, sob o título “Mais médicos que faltam ao trabalho”.

Se houvesse efetivo interesse do governo Dilma pela melhoria das condições de saúde das populações pobres e historicamente abandonadas pelo poder público, cuidaria da implantação de centenas de Programas de Residências Médicas em Saúde da Família e Comunidades, orientadas pela Comissão Nacional de Residências Médicas, do Ministério da Saúde, inclusive nos hospitais militares.

Não é difícil de executar! Já existe verba alocada para pagamento das bolsas de estudos dos médicos residentes e dos orientadores.

A Diretoria de Ensino, da Fundação Hospital Adriano Jorge, em Manaus, vencendo os mais variados obstáculos, com o apoio da Comissão Nacional de Residência Médica, implantou as primeiras Residências Médicas em Saúde da Família e Comunidades no interior do Amazonas, e também com o estimulo do Comando Regional da Aeronáutica, no Hospital de Aeronáutica em Manaus.

Tem solução, sim! Com vontade e determinação política os programas de residência Médica poderão representar, em poucos anos, melhora do IDH das populações podres, que não necessitam de diagnósticos de doenças raras, mas de cuidados básicos de saúde.

Qual a posição política as Faculdade de Medicina da Universidade do Estado do Amazonas?

Fundada em 2001, a Universidade do Estado do Amazonas é uma instituição jovem, mas já a maior multi-campi do Brasil, presente em todos os municípios do interior do Amazonas. Professores e alunos, nos muitos cursos graduação e pós-graduação (http://data.uea.edu.br/ssgp/area/1/ppp/2793-7.pdf) uniram-se à presença, há quarenta anos, da Universidade Federal do Amazonas, em muitos municípios amazonenses, e juntas estão promovendo mudanças estruturais de grande importância.

O atual reitor da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), jovem na docência e na produção científica, em reunião ocorrida há algumas semanas, no anfiteatro da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESA), manifestou-se a favor da aplicação do REVALIDA para todos os médicos estrangeiros que desejassem trabalhar no programa “Mais médicos”. Muito contente com esta atitude, postei no facebook o corajoso posicionamento da autoridade universitária. Poucos dias depois, adotou outra interpretação. Nova assembleia, dessa vez sem a presença do reitor da UEA, votou os seguintes pontos: 1) Exigência do REVALIDA para todos os médicos, sem registro nos Conselhos Regionais de Medicina, inscritos no programa “Mais médicos”; 2) Não concordância para orientar médicos sem CRM e sem REVALIDA.

Não me parece que essa decisão tenha tido qualquer efeito na administração. Os primeiros médicos estrangeiros já estão em Manaus sem REVALIDA.

Finalmente, gostaria de reiterar as seguintes posições. Sob nenhuma hipótese concordo que hospitais de ricos sejam em parte mantidos com dinheiro público. Apesar de ser a medicina uma profissão liberal, não concordo com cobranças descabidas em consultas e atendimentos hospitalares. Tenho plena consciência da existência de “medicina dos ricos” e “medicina dos pobres”. Pelo menos na periferia urbana de Manaus e entre as populações ribeirinhas do médio rio Solimões, conheço o absoluto abandono do poder público, agravando a miséria na qual vivem milhares de pessoas. Entendo a angústia do governo do Estado do Amazonas com a ausência de médicos na maior parte das cidades do interior do Amazonas. Se houver interesse político de vencer a corrupção que se oxigena na miséria, dever-se-ia implantar carreira para os médicos do SUS, com dedicação exclusiva e obrigatoriamente generalista, a exemplo dos magistrados. Seria possível criar assim uma rede se assistência primária de saúde. Implantar-se-iam centenas de Residências Médicas da Família e da Comunidade nas cidades com baixo IDH, a exemplo do que fez, entre 2011 e 2012, a Diretoria de Ensino e Pesquisa da Fundação Hospital Adriano Jorge, em Manaus. Como cidadão, professor e médico tenho o direito de expor publicamente minhas ideias contra o programa “Mais médicos”. Atropela as leis que regem o exercício da medicina no Brasil; representa uma afronta aos direitos de milhares de alunos de medicina e médicos com registros no Conselho Federal de Medicina, que pagam os impostos e obedecem às leis. Ademais, há fortes indícios de que o Programa atende a razões político-partidárias em desacordo com o bem comum; por último, estou convencido de que a presença de médicos sem a devida avaliação técnica não redundará em mudança na atual situação de descalabro da saúde pública entre as populações pobres.

Prof. Dr. João Bosco Botelho


[1] Platon. Les Lois. In: Oeuvres Completes II. Paris. Gallimard. Bibliothèque de la Pléiade. 1950. v. 64.

Leia mais:

‘Mais Médicos’: debate amplia discussão sobre o SUS – Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos ouviu especialistas.

‘Cabo de guerra entre governo e entidades médicas é prejudicial à saúde da população’ – Entrevista de Ligia Bahia ao blog de HCSM

Para presidente do Conselho Médico Chinês, avaliação de competências é ponto chave – Entrevista de Lincoln Chen, fundador da Aliança Mundial pela Força de Trabalho em Saúde, ao blog de HCSM

Scheffer: falta de carreira digna desumaniza o SUS – Entrevista de Mário Scheffer ao Cebes.

RH na agenda de debates – Carlos Henrique Assunção Paiva comenta a entrevista de Mário Scheffer

Mais Médicos: uma vereda para os nossos grandes sertões – Artigo de Reinaldo Guimarães para o site do Cebes.

Conselho Deliberativo da Fiocruz lança nota em apoio ao Programa Mais Médicos

Julie estudou os médicos cubanos: mortalidade infantil caiu 50% – Entrevista da socióloga norte-americana Julie Feinsilver ao Viomundo.