Scheffer: falta de carreira digna desumaniza o SUS

Agosto/2013

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Mario Scheffer na entrevista coletiva de lançamento do estudo Demografia Médica no Brasil, em fevereiro de 2013, na sede do CFM. Foto de Elza Fiúza / Agência Brasil

A concentração nas capitais do Sul e do Sudeste é a mais evidente – mas não a única – desigualdade na distribuição de médicos no Brasil. O acirramento da concentração dos profissionais no setor privado e as escolhas das especialidades a partir de uma formação médica guiada pelo imperativo mercantil e tecnológico são outros motivos apontados por Mário Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e coordenador do estudo Demografia Médica no Brasil, divulgado em fevereiro de 2013.

Nesta entrevista concedida ao Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e reproduzida no blog da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Scheffer reconhece os méritos do programa Mais Médicos de prever contratações emergenciais de médicos e mudanças no ensino da medicina, mas não o considera uma política planejada de saúde pública, e sim “um pacote desconexo concebido pelo marketing”.

Para ele, um verdadeiro “pacto pela saúde” deveria conter medidas para  formar, valorizar e fixar não só médicos, mas todos os trabalhadores da saúde. “É uma pena que o debate tenha se polarizado entre o corporativismo cego, que não aponta alternativas de curto prazo, e o governismo açodado, com rasgos de improviso e traços de autoritarismo”, diz.

Faltam médicos no Brasil?

O Brasil já tem 400 mil médicos, houve aumento expressivo devido à enxurrada de cursos de medicina, privados principalmente, abertos nos últimos vinte anos, mas esse crescimento não beneficiou de forma homogênea a população. Claro que faltam médicos em inúmeros pequenos municípios, nas periferias, em vários serviços do SUS. Há pessoas sofrendo e morrendo com a falta de médicos, não se pode ser insensível a essa realidade. Perto de 60% dos médicos brasileiros trabalham no SUS. É muito, muito pouco para um sistema que se pretende universal.

Nosso estudo da demografia médica não é um estudo de suficiência, mas de desigualdades na distribuição. Não existe no mundo modelo teórico ou científico unanimemente aceito para determinar exatamente quantos médicos um país ou região precisa. Este é um conhecimento ainda em construção. São precários tanto os números do governo sobre quantitativos de médicos necessários quanto as interpretações equivocadas de entidades médicas de que não faltam médicos no Brasil.

Os médicos formam um universo muito heterogêneo, com variáveis complexas como gênero, carga horária, vínculos, especialidades. E a localização dos médicos é influenciada por um conjunto de interesses e de fatores, pessoais, institucionais, corporativos, políticos e epidemiológicos. No nosso caso, a desorganização do sistema de saúde e o fato de não termos claro que sistema queremos no Brasil, são pontos decisivos para a falta localizada de médicos.

A desigualdade geográfica é a mais conhecida (os médicos se concentram nas capitais do sul e sudeste), mas também houve um acirramento da concentração de médicos a favor do setor privado nos últimos tempos. E um terceiro nível, a desigualdade entre ocupações e especialidades, que tem a ver com o perfil do médico formado e com uma medicina hoje guiada pelo imperativo mercantil e tecnológico. Como temos um ensino desconectado das reais necessidades do sistema de saúde, mesmo num mar de médicos faltarão médicos com o perfil que precisamos. Por isso há o risco de o aumento global de médicos, como quer o governo via expansão de vagas, sobretudo privadas, levar esses novos médicos mal formados para os mesmos lugares onde já há elevada concentração, nos grandes centros , no setor privado e em determinadas especialidades. Não haverá solução fácil e definitiva sem mudanças estruturais no sistema de saúde, sem mais financiamento público, sem presença do Estado, sem reforma profunda na formação de novos médicos.

O programa Mais Médicos não é um caminho?

No ano em que completa 25 anos, o SUS merecia mais contrapartidas. Mais recursos, mais coragem política, não só mais médicos. Na última pesquisa CNI-Ibope a saúde estourou como principal problema do Brasil na avaliação de 77% da população, o que ecoa os gritos das ruas por serviços essenciais e saúde pública de qualidade. Não dá para traduzir essa insatisfação como mera falta de médicos. O desalento se aplica ao SUS por inteiro, mas também aos péssimos serviços dos planos de saúde. O governo não entendeu muito bem esse recado, lançou uma cortina de fumaça. É uma pena que o debate do Mais Médicos tenha se contaminado, polarizado entre o corporativismo cego, que diz não a tudo e não aponta alternativas de curto prazo; e o governismo açodado, com rasgos  de improviso e traços de autoritarismo.

O programa tem méritos ao prever contratações emergenciais de médicos e mudanças no ensino da medicina, mas não é exatamente uma política planejada de saúde pública, e sim um pacote desconexo concebido pelo marketing, a tentativa de emplacar uma marca pré-eleitoral, num momento de urgência e desespero do governo para responder às ruas, à queda de popularidade. Fosse mesmo um pacto, como dizem, teria envolvido instituições e atores fundamentais. Até o Conselho Nacional de Saúde, em tese nosso espaço mais plural de debate, foi convocado apenas para o endosso ‘a posteriori’, como de praxe nessa gestão.

A vinda de médicos estrangeiros foi a maior das polêmicas, não?

Pelo balanço da primeira leva de inscrições, em julho, não veio a legião estrangeira pretendida pelo governo nem a invasão alienígena temida pelas entidades médicas. Os estrangeiros virão aos poucos, como sempre vieram, não desembarcarão em massa porque a migração de médicos entre países depende de oferta de salário competitivo com o disputado mercado internacional, condições de trabalho, qualidade de vida e, principalmente, oportunidade de especialização profissional, quesitos que não estão presentes no Mais Médicos. Como o estrangeiro tornou-se questão menor, reduz-se essa fase do programa à louvável contratação emergencial dos médicos, mas que tem como ponto sensível a ausência de direitos trabalhistas aos contratados, não muito diferente das admissões precárias no SUS país afora.

Mas e a questão da revalidação dos diplomas?

Está aí outra contribuição desse imbróglio. Mostrou que o Brasil precisa definir se fará a avaliação de médicos – e de outros profissionais de saúde, por que não? – antes de começarem a atuar na profissão no país. Isso vale para os estrangeiros, para os brasileiros que se formam no exterior e para os médicos formados aqui. O objetivo, como acontece em tantos países que avaliam com rigor o ingresso, é o de proteger a população contra médicos mal formados e despreparados. Há um certo cinismo, muitos dos que exigem a revalidação de estrangeiros vetam a discussão sobre o exame de ordem para médicos. É um debate explosivo, mas inadiável considerando a deterioração a olhos vistos do ensino médico no Brasil, a abertura de escolas em negociatas, a proliferação de cursos sem corpo docente, sem estrutura e sem hospital de ensino, o fracasso das investidas do MEC com o provão e ENADE, o faz de conta dos exames de progresso ao longo da graduação, que não serviram para melhorar o ensino médico.

E quanto às propostas de segundo ciclo, ampliação de vagas de graduação e de residência?

As universidades públicas convenceram o governo a recuar na proposta inviável de aumento do curso para oito anos. Apontaram para uma boa saída alternativa, a universalização das vagas de Residência Médica para os recém-formados, mas falta esclarecer o que isso trará de ganho para a atenção primária no SUS, que deveria ser o foco de qualquer mudança tanto na graduação quanto na residência. Nesse ponto, dos oito anos, o debate foi prejudicado pela tentativa de impor o trabalho compulsório para médicos no SUS. A pergunta é outra, o país quer o serviço civil obrigatório no SUS para todos os profissionais de saúde? É isso que foi deliberado em várias conferências nacionais de saúde, parece que a população apoia.

O anúncio de mais 11 mil vagas de graduação – que demandariam abertura de pelo menos mais 100 cursos – serve para expor o quão precário e heterogêneo é hoje o ensino de medicina no país, e que seria uma irresponsabilidade tal aumento, sem recuperar antes o que está aí.  Sem um plano de expansão das universidades públicas, jogam as cartas na privatização do ensino médico, uma moeda de troca nas próximas eleições, pois cada vaga vale hoje no mercado R$ 4.500, 00  por mês, em média.  O estado de penúria de cursos federais abertos nos últimos anos, como o campus de Macaé da UFRJ e a medicina da Universidade Federal de São Carlos é um sinal de alerta. Hoje o Brasil forma 15 mil médicos por ano, boa parte sem as mínimas condições de cuidar de gente. Por meio de contas obscuras, que beiram a desonestidade intelectual, querem chegar a 26 mil, mas a massificação de péssimos médicos trará mais prejuízos que benefícios ao SUS.

Não houve intransigência dos médicos e de suas entidades?

As passeatas de médicos contra o programa e algumas atitudes de lideranças médicas reforçaram a pecha de corporativismo e elitismo. O desgaste pode servir para que parte da categoria repense seus domínios privados e valores conservadores e se aproximem mais do SUS, propondo caminhos para aquilo que a população precisa com urgência, no caso o povo quer médicos onde hoje eles não estão. Dessa briga não sairão vencedores, governo e médicos já perderam. E há efeitos colaterais preocupantes. Emergiu uma espécie de catarse anti-médicos, uma purgação desses profissionais. A demonização dos médicos serve tanto de distração de governistas atordoados, sem entender essa onda de insatisfações, quanto integra a pauta das demais profissões da saúde, unidas contra um inimigo comum, o famigerado ato médico.  O ato médico foi uma lei estúpida e desnecessária, pois os médicos nem sequer precisam de uma lei para marcar território ou para preservar a sua prática hegemonica e arrogante. Prova disso é o protagonismo que o governo reservou a eles no programa Mais Médicos, como se a presença deles sozinhos, sem os demais profissionais, fosse a salvação. Não existirá SUS sem médicos e o desafio está em estabelecer um diálogo multiprofissional que julgue os médicos brasileiros não como o problema, mas como parte essencial da solução. É hora de tirar o bode branco da sala e arregaçar as mangas na defesa do SUS.

Você quer dizer que a agenda precisa ser ampliada?

A histeria em torno do Mais Médicos deve ceder lugar ao  debate que interessa: como salvar  o SUS, que sofre com a retração do  financiamento federal, a cobertura insuficiente, a baixa resolutividade, a privatização da rede perpetuada até por prefeitos que tinham discurso oposto em campanha. Estamos desperdiçando o momento de intensa expressão pública, oportuno para fazer um grande debate nacional, por exemplo com plenárias extraordinárias de saúde convocadas pelos conselhos, que radicalizem a exigência de mudanças mais profundas do modelo de atenção à saúde, com viabilização de fato da atenção primária e de uma nova articulação interfederativa que tire do papel as redes e regiões de saúde. Um verdadeiro “pacto pela saúde” deveria conter essas metas, mas também medidas para  formar, valorizar e fixar todos os trabalhadores da saúde,  não só médicos. Junto com o subfinanciamento e a má gestão, o que tanto ameaça o SUS é o abandono dos nossos recursos humanos, sem políticas de valorização, sem perspectivas. Muitos trabalhadores do SUS hoje atendem e acolhem mal as pessoas, porque são mal formados, ganham pouco e não têm condições de trabalho, porque suas relações e vínculos estão cada vez mais precarizados, improvisados, privatizados. O ingresso totalmente desregulado de pessoal nos serviços, a alta rotatividade e a inexistência de carreira digna desumanizaram o SUS.

Fonte: Comunicação/Cebes

Acesse o relatório do estudo Demografia Médica no Brasil

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