Ditadura e sociedade, complexa relação

Marina Lemle e Jaime Benchimol | Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos

Daniel Aarão Reis. Foto: Zahar

Daniel Aarão Reis. Foto: Zahar

Uma terceira vertente historiográfica que não acredita em bandidos e mocinhos quando se fala em ditadura tem inspirado o historiador Daniel Aarão Reis. O professor titular de História Contemporânea da UFF argumenta que lideranças civis que ajudaram a maquinar o golpe enriqueceram muito e, na obscuridade, mandam nos governos até hoje. Nesta entrevista ao blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos ele esquenta os debates sobre os 50 anos do golpe.

Como avalia o estado da arte no campo historiográfico e sociológico sobre o golpe de 64?

Sobre a ditadura, tivemos duas ondas consistentes, que ainda se mantêm: a produção memorialística, feita basicamente por militantes ou ex-militantes de esquerda, mas da qual não estiveram ausentes intelectuais de direita (penso sobretudo nos oficiais do exército); e a produção sobre as organizações de esquerda, em particular as que pegaram em armas contra a ditadura. Ambas foram capazes de oferecer importantes contribuições para a compreensão do período ditatorial.

Contudo, com o novo século, apareceu uma terceira vertente, muito mais fecunda – a que procura entender as complexas relações entre ditadura e sociedade. Além disso, procura-se inserir a ditadura no tempo longo da história brasileira. Por esta vertente, a ditadura não foi apenas militar, nem constituiu um parêntese sinistro na história brasileira. Esta terceira vertente tem provocado saudáveis debates e polêmicas, superando um certo marasmo unânime, fator e resultado da preguiça intelectual que faz da história um enfrentamento entre “bons” e  “maus”, entre “mocinhos” e “bandidos”, preferindo as arquiteturas simplificadas e as polarizações definidas. Não  preciso dizer que me identifico com esta última tendência que, realmente, renovou os estudos sobre a ditadura.

O que falta fazer?

Muito já se fez, mas falta muito a fazer na linha da pesquisa e do estudo do que chamo as relações complexas entre sociedade e ditadura. Há continentes ainda totalmente submersos como, por exemplo, pesquisar as relações entre os trabalhadores urbanos e rurais e seus sindicatos com o regime ditatorial para além da constatação óbvia que a ditadura os oprimiu. De fato, houve opressão e repressão. Mas não é notável que não se registraram revoltas ou explosões populares contra a ditadura? No campo das instituições, há também muito a fazer, embora tenham se registrado importantes avanços.

Poderia citar alguns?

Destaco, entre muitos outros,  o trabalho de Lucia Grinberg sobre a ARENA, o de Aline Presot a respeito das Marchas da Família com Deus e pela Liberdade, as teses recentemente defendidas por Janaína Cordeiro (as comemorações dos 150 anos da independência do Brasil em 1972), Livia Magalhães (estudo comparativo entre as Copas de 1970 e 1978 realizadas no México e na Argetina) e Gustavo Alonso (sobre a música sertaneja nos anos 1970); o trabalho agora publicado por Rodrigo Patto Sá Motta, a respeito das relações entre a ditadura e a universidade pública. Avanços notáveis, mas que apenas abriram o campo. É lamentável, por exemplo, que não tenhamos  estudos sobre  os grandes capitalistas – urbanos e rurais (salvo a tese pioneira de René Dreifuss a respeito da participação das lideranças civis na urdidura do golpe, às vésperas de 1964). Foram eles os grandes beneficiários do golpe e da ditadura. Enriqueceram a valer. Para eles, a ditadura foram anos de ouro puro e, no entanto, continuam apitando forte no país e mandando nos governos. A expressão “ditadura militar”, para eles, é um bálsamo, pois os deixa na obscuridade…

A historiografia sobre o golpe interage com a de outros países que tiveram ditaduras contemporâneas? Há semelhanças?

Penso que a historiografia argentina está muito mais avançada do que a brasileira na questão de pensar a ditadura como uma construção histórica e social. No Brasil, em certos estudos, parece que a ditadura caiu do céu, ou de Washington, e se manteve por artes do demônio. Por outro lado, sobram “resistentes”- quase todo o mundo “resistiu” à ditadura. E de tal modo foi compacta a resistência, que não se chega a compreender porque a ditadura durou tanto no tempo…e entrou sem quase dar tiros e saiu sem receber uma pedrada…

Existem trabalhos que relacionem o impacto do regime militar sobre a pesquisa científica e a saúde no Brasil?

Saiu agora, como disse, um notável estudo, de Rodrigo Patto Sá Motta – vai marcar época. Ele investiga – e denuncia – a repressão a professores e estudantes. Mas avalia, ao mesmo tempo, os estímulos e os avanços registrados sob a ditadura. E a conciliação, as barganhas, as negociações, as cumplicidades que, inclusive, mudaram muito, segundo as circunstâncias. Entre a ditadura e as universidades, como em muitos outros campos, para além da repressão, houve “de um tudo”. É isto que precisa ser evidenciado, explicado e interpretado.

Espero bem que os debates sobre os 50 anos possam abrir ângulos nesta linha de compreender melhor o processo histórico. Só assim seremos capazes de construir antídotos contra eventuais novos surtos autoritários.

Livros:
Capa do livro Ditadura e Democracia no Brasil, de Daniel Aarão Reis
Daniel Aarão Reis publicou pela Zahar:
Ditadura militar, esquerdas e sociedade
e
Ditadura e democracia no Brasil

Leia mais no blog de HCS-Manguinhos:

Empresários e militares conspiraram para o golpe de 64
Para Renato Lemos, professor de História da UFRJ, objetivo era modernizar o capitalismo brasileiro sob o imperialismo dos EUA

Programação do Museu da Vida lembra os 50 anos do golpe civil-militar

Como citar este post [ISO 690/2010]:
Ditadura e sociedade, complexa relação. Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. [viewed 26 March 2014]. Available from: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/ditadura-e-sociedade-complexa-relacao/