Conheça Magda Donato, jornalista espanhola que se internou em um manicômio para contar a história do lugar

Janeiro/2016

Virigina Mendoza | Yorokobu | Opera Mundi

Não se interessava por entrevistas nem visitas. Precisava de muito mais porque com ela o jornalismo de ir, ver e contar adquiria outros matizes, outras faces. Sua verdade só podia entrar por todos os sentidos ao mesmo tempo e, para isso, é preciso ir, mentir e permanecer, antes de contar.

Carmen Eva Nelken nasceu em 1898 no seio de uma família judia. De pai alemão e mãe francesa, cresceu ofuscada por sua irmã mais velha, Margarita Nelken, que se tornaria uma das primeiras deputadas espanholas. Para que ninguém relacionasse suas conquistas com o sobrenome, Carmen decidiu assinar como Magda Donato, o pseudônimo com que ainda é (des)conhecida.

Duas paixões regiam a vida de Magda Donato: o teatro e o jornalismo. Tudo o que fez ao longo da vida foi harmonizá-las. Trocando de identidade para chegar aonde queria, indo a restaurantes populares públicos como uma viúva com fome ou entrando na cadeia como modista violenta, conseguiu fazer jornalismo sem renunciar à interpretação.
Assim começou a escrever o que ela chamava de “reportagens vividas”, textos que, voluntariamente ou não, bebiam do trabalho de Nellie Bly, a jornalista que no final do século XIX seguiu o desafio do personagem imaginário de Jules Verne e percorreu o mundo em 72 dias, além de viver em um manicômio para escrever uma reportagem.

Não, o jornalismo gonzo não foi inventado nem por Günter Wallraff nem por Hunter S. Thompson. Embora isso não seja explicado na faculdade, o jornalismo de imersão nasceu dos pés e dos olhos de mulheres como Nellie Bly e Magda Donato, as primeiras a adotarem outras personalidades para escrever suas reportagens em primeira pessoa.

Além do mais, para Magda Donato, as qualidades das mulheres as predispunham ao bom jornalismo. Assim ela explicou em La Mujer y el Periodismo (A Mulher e o Jornalismo): “Quando o ambiente tiver se livrado por completo de sua estreiteza e mesquinharia nefastas, as mulheres poderão livremente consagrar-se ao jornalismo que somente elas podem fazer chegar a seu pleno desenvolvimento. Somente as mulheres têm bastante emoção para pôr no jornalismo as doses de humanitarismo altruísta do qual é capaz”.

Magda Donato queria mudar o mundo com seu trabalho, por isso se distanciou das amarras do jornalismo da época para enriquecer seus textos com recursos literários. Tanto ela como Nellie Bly rejuvenesceram o jornalismo, não só pela obsessão de se meterem em confusão e se disfarçarem para trabalhar, mas por um estilo muito peculiar que ambas compartilhavam e com o qual conseguiram fazer com que a pessoa que as lê hoje se pergunte se aquilo realmente pôde ter sido escrito há um século, e não ontem. O humor, a ironia, a simplicidade e a introdução de descrições e diálogos transformam a obra de ambas em reportagens atemporais que parecem mais típicas do Novo Jornalismo, movimento posterior.

Aproveitando seu conhecimento de vários idiomas (por suas origens ela também falava perfeitamente francês e alemão) e seus dotes interpretativos, Magda Donato conseguiu ser quem quis, e suas “reportagens vividas” foram aparecendo, com grande êxito, no jornal Ahoraentre 1932 e 1936. Foram recompilados por Margherita Bernard para a editora Renacimiento com o título Reportajes.

As outras vidas de Magda Donato

Magda Donato necessitava de um médico que certificasse sua loucura porque teimou em contar a vida das internas de um sanatório psiquiátrico. Não lhe bastava olhar ou escutar o que lhe queriam dizer: tinha que viver com elas, ser mais uma. Não é a ideia mais inusitada, já que décadas antes Nellie Bly se fez internar em um manicômio com a mesma finalidade para escrever o livro Diez Días en un Manicomio. Ambos os textos se complementam: enquanto Bly destaca o tratamento vexatório que as pacientes recebem, Donato se concentra em suas companheiras, suas manias, seu dia-a-dia e seus anseios. Todas são retratadas com respeito e carinho na reportagem Un Mes entre las Locas.

No manicômio, Donato chega a entender as internas: “Quem disse que perdem a razão? O que fazem é trocá-la por outra que lhes esconde, é verdade, as tristezas que existem, mas que lhes inventa, em troca, outras tão atrozes que a realidade talvez não soubesse criar”.

Uma mulher que caça ervilhas com uma forquilha que tira do cabelo, outra que regurgita por culpa do riso, e outra a quem o governo manda aviões para espioná-la até quando leva flores ao túmulo do falecido esposo são algumas de suas companheiras.

Se era difícil entrar em um manicômio dizendo a verdade (e um século atrás nada era mais fácil do que considerar uma mulher louca), previsível era o final: Magda se desfizera de sua carteira de jornalista para que ninguém pudesse descobrir sua identidade. Tentar convencer o médico de sua sanidade mental com base em argumentos tais como o de que não estava louca, que na realidade era jornalista e tinha ido ali para escrever, era algo que qualquer outra interna poderia ter contado, e ninguém a teria levado a sério.

Se há algo de que a jornalista não desdenhava, além do humor, era a lógica mais pura e a compreensão, em um mundo que para ela se apresentava mais simples do que para os médicos ou os desesperados que recorriam aos adivinhos.

Quando o diretor de Assistência Social lhe entregou os dados estatísticos relacionados com restaurantes e albergues aonde ia quem não tinha nada, propôs a ela que “desse uma voltinha” por lá. Donato foi taxativa: “Não, muito obrigada, não me interessa”. Claro que lhe interessava, mas algo tão superficial era insuficiente para uma mulher que necessitava mendigar para sentir a fome. Na realidade, já havia feito isso.

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(*) Publicado em Yorokobu | Tradução: Maria Tereza Souza | Fonte: Opera Mundi

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