Conep: cientistas sociais presos em camisa de força burocrática

Abril/2014

Por sugestão do professor Luiz Antonio de Castro-Santos, o blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos abre um espaço de discussão, críticas e comentários sobre as normas que regulam as pesquisas no Brasil hoje. Ele escreveu um texto para incitar o debate no blog e uma carta aos editores da revista. Estamos publicando contribuições ao debate.

Conep: cientistas sociais presos em camisa de força burocrática

Luiz Fernando Dias Duarte *

Luiz Antonio de Castro Santos vem, mais uma vez, colocar o dedo numa ferida incômoda do atual sistema brasileiro de ciência e tecnologia: a descabida e autoritária submissão das pesquisas em ciências sociais e humanas à lógica biomédica do sistema CEP/Conep de avaliação da ética em pesquisa, criado no âmbito do Ministério da Saúde em 1996.

O sistema foi uma salutar invenção de proteção dos direitos humanos numa área marcada pela memória das terríveis intervenções eugênicas do século XX e pela constante e esfaimada exploração capitalista do mercado de medicamentos e recursos terapêuticos. Infelizmente, esse avanço, propiciado pelo movimento da bioética, vem se revelando danoso para o conjunto das ciências humanas e sociais, vastamente distintas, em seu potencial de risco e em seus métodos de trabalho, das pesquisas com intervenção direta sobre o corpo humano.

A locução “envolvendo seres humanos”, generosa em sua intenção original, transformou-se no argumento para a aplicação de uma camisa de força burocrática, sempre prestes a exercitar uma ilegítima polícia epistemológica e metodológica sobre as ciências cujos princípios são diversos dos que regem as ciências naturais.

Algumas das associações de ciências humanas vêm se mobilizando seguidamente, há anos, contra esse estado de coisas; resultando na apresentação de moções críticas na consulta pública aberta pela Conep faz dois anos.  Como resultado, a Resolução 466/12, que substituiu a 196/96, previu a convocação de um GT voltado para a elaboração de uma resolução específica das ciências humanas e sociais. Esse GT iniciou seus trabalhos em agosto de 2013, com a participação de numerosas associações, de membros da Conep e de outros setores do Ministério da Saúde.

Pari passu, iniciaram as associações, congregadas em um novo Fórum das Associações de Ciências Humanas e Sociais, uma negociação com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, visando o estabelecimento de uma regulação alternativa, naquele ministério, da ética em pesquisa nessas outras ciências.

As associações do Fórum aceitaram participar do GT da Conep na expectativa de verem atendidos os princípios por elas defendidos para essa nova regulamentação, em função de promessas de uma discussão democrática e aberta à diversidade. Mas não suspenderam as negociações com o MCTI, na medida em que não têm nenhuma garantia de que o primeiro processo venha a realmente redundar em um documento adequado às suas exigências. A minuta que vier a ser aprovada pelo GT deverá ser submetida à Conep, ao CNS e a uma consulta pública, o que sugere uma longa série de batalhas – dado o contexto adverso em que se terá que travar.

As ciências humanas e sociais consideram, evidentemente, essencial que haja uma consciência e um controle ético de suas práticas de pesquisa. Apenas demonstram que suas premissas e métodos são diversos dos que regem as ciências biomédicas, não apenas pelo seu caráter não invasivo, mas também pela qualidade processual e dialogal de seus métodos, em que os desafios éticos não são previsíveis a priori, mas emergem no contexto continuado da interação com seus interlocutores. Isso torna completamente esdrúxula a exigência universal de TCLEs escritos, assinados e altamente formalizados, que distorcem as condições habituais de tais pesquisas, reificando a priori uma preocupação que tem que ser contínua, inclusive após o término da experiência de pesquisa.

Há duas questões fundamentais levantadas por Castro Santos no tocante a essa futura e eventual regulamentação específica, ora em discussão no GT da Conep: a definição da abrangência do conceito de ciências humanas e sociais e o desenho prático do sistema de avaliação a ser inventado.

É unânime a consideração de que as pesquisas de ciências humanas e sociais se definem pelo seu enfoque e método e não pela temática sobre a qual se debruçam – o que viria a obviar os temores levantados pelo colega no tocante às pesquisas com temáticas de saúde.

Tem sido também considerado conveniente, dadas as características do sistema altamente complexo já em funcionamento, que a nova via de avaliação será incluída na Plataforma Brasil, como um caminho alternativo. Haverá uma página de caracterização mínima inicial, a partir da qual – na forma da auto-atribuição – a avaliação se bifurcará para as ciências biomédicas e para as ciências humanas e sociais. No caso destas últimas, outras bifurcações se seguiriam, em função das características dos projetos, definindo-se quatro patamares de “risco” (mínimo, baixo, moderado e alto), correspondentes a aprofundamentos sucessivos da avaliação. No nível mínimo, haveria uma aprovação imediata, após checagem do correto preenchimento da página inicial do registro; no nível baixo, o exame por um relator de CEP; no nível moderado, o exame pela plenária do CEP, e, no nível alto, o exame pela Conep. Esse sistema é proposto pelo GT da regulamentação específica, mas tem que ser negociado com outro GT, criado à mesma época, e destinado à revisão da “acreditação e risco”. É provável que, para garantir o bom curso desse novo sistema, menos duro e burocrático, seja instituído um mecanismo de checagem aleatória, a posteriori, para avaliar seu desempenho e instruir o destino do sistema.

A causa é abraçada com denodo por todos os cientistas sociais e humanos; a luta tem sido dura, trabalhosa. Esperemos que o bom senso e a tolerância à pluralidade dos colegas que labutam nas ciências naturais prevaleçam nesse processo.


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* Luiz Fernando Dias Duarte é antropólogo e professor titular do Museu Nacional/UFRJ

Contribuições para o debate:

Vamos discutir os comitês de ética na pesquisa?
Por sugestão do professor Luiz Antonio de Castro-Santos, o blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos abre um espaço de discussão, críticas e comentários sobre as normas que regulam as pesquisas no Brasil hoje em dia.

Uma crítica aos atuais comitês de ética na pesquisa no Brasil
Carta de Luiz Antonio de Castro-Santos aos editores de HCS-Manguinhos

Maurício Reinert: ‘O Brasil precisa de mais, e não menos, pesquisa’
Para professor de Administração da Universidade Estadual de Maringá, submissão de pesquisas em ciências sociais ao Conep fere autonomia universitária

Flavio Edler: comitês de ética inibem liberdade de pesquisa
Historiador compara sanha reguladora à Real Mesa Censória dos tempos coloniais.

Luciano Mendes de Faria Filho: anonimato para quê?Para o professor de Educação da UFMG, o anonimato nas pesquisas em ciências humanas mais garante o apagamento da autoria, do pensamento e da expressão dos setores populares do que a fidedignidade dos dados.

Como citar este post [ISO 690/2010]:

Conep: cientistas sociais presos em camisa de força burocrática. Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. [viewed 10 April 2014]. Available from: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/conep-cientistas-sociais-presos-em-camisa-de-forca-burocratica/