Um olhar jovem sobre a Conferência de Astana

Novembro/2018

Blog de HCS-Manguinhos

Fabiana Pinto Fernandes em Astana, 2018

Aos 23 anos, Fabiana Pinto Fernandes acaba de incluir no seu currículo de vida uma experiência muito especial. Há um mês, ela estava em Astana, no Cazaquistão, participando da Conferência Global de Cuidados Primários em Saúde, a Conferência de Astana, que sucede a Conferência de Alma-Ata, também no Cazaquistão. A Declaração de Alma-Ata, de 1978, garantiu o direito humano universal à saúde. Num momento marcado por disputas de interesses, a Declaração de Astana, apesar de menos abrangente que a de Alma-Ata, reafirma compromissos estabelecidos há 40 anos na Declaração de Alma-Ata, como o compromisso governamental em garantir o direito à saúde. É o que nos explica Fabiana, aluna do curso de graduação em Saúde Coletiva no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ e bolsista PIBIC no Observatório História e Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, onde pesquisa atenção primária à saúde. Ela fez parte da delegação de jovens da sociedade civil, tendo sido selecionada pelo Instituto Global Attitude a partir de análise de currículo, carta de motivação e proposta de artigo científico. O melhor momento para Fabiana, assim como para centenas de outros participantes, foi a fala contundente da diretora regional para as Américas da OMS Carissa Etienne, longamente ovacionada pela plateia de pé. O Blog de HCS-Manguinhos convidou a estudante a compartilhar com os leitores um pouco dessa experiência e aprendizado, vivenciada por ela pelo prisma da juventude. No final da entrevista, siga os links para mais informações sobre a Conferência de Astana e a participação do Brasil e da Fiocruz. Por que a conferência e a declaração foram importantes? Porque ela reafirma os compromissos estabelecidos há 40 anos na Declaração de Alma-Ata, como o direito à saúde e o compromisso governamental em garantir esse direito, assumindo um papel importante nesse momento de continuidade do que foi firmado anteriormente. É claro que a Declaração de Astana é muito diferente da de Alma-Ata, sendo a primeira muito mais abrangente. O momento político que vivemos no mundo é outro, e as disputas e interesses de instituições como o Banco Mundial ou a Fundação Bill e Melinda Gates já se mostraram evidentes. A conferência foi importante principalmente para identificarmos aliados na luta pela atenção primária à saúde integral, que é o modelo de Atenção Primária à Saúde (APS) preconizado e defendido no Brasil, por exemplo. Foi dito, em muitos momentos ao longo do evento, que não conseguimos alcançar a “saúde para todos” desejada em Alma-Ata. Tedros Adhanom, o diretor-geral da OMS, afirmou logo na plenária de abertura da conferência que o que conseguimos na verdade foi a “saúde para alguns”, e que isso não é suficiente. Admitir isso é fundamental para pensarmos os próximos passos, elaborarmos estratégias para garantir não apenas a cobertura universal em saúde, que era o tema da conferência, focada principalmente na cobertura financeira, mas sim o acesso a esses serviços de saúde de acordo com as necessidades de cada um. Qual foi a fala que você mais gostou e por quê? Sem dúvida a fala da diretora da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), Carissa Etienne, durante a plenária final, e posso dizer que, pelos aplausos que ela recebeu de aproximadamente duas mil pessoas que participaram da conferência, foi o discurso predileto da maioria dos participantes. Carissa tocou em pontos fundamentais que estiveram presentes nas discussões dos corredores da conferência entre os participantes, em especial dos países das Américas: a concepção da atenção primária como ordenadora dos sistemas universais de saúde, a ideia de APS integral, o papel do setor privado na saúde e temas que não chegaram a ser aprofundados como deveriam, nem na programação da conferência e muito pouco na Declaração de Astana que, apesar de ter avançado muito em relação à primeira versão apresentada pela OMS em agosto desse ano, foi para a consulta dos países com alguns problemas. Carissa fez um chamado a todos – sociedade civil, acadêmicos e, em especial, aos governantes – para que “invistam na saúde do seu povo e em seus sistemas”, “invistam em saúde e não em guerra” e para que “não reduzam a saúde a um pacote mínimo de serviços, quando sua população merece muito mais que isso”. Foi uma fala forte e emocionante. Que problemas você destacaria na Declaração de Astana? A declaração deixa a desejar em muitas temáticas, como a de gênero e população LGBTI, que não são citados. Na sessão paralela que tratava de iniquidades em saúde, onde teoricamente deveria se abordar isso, houve uma discussão muito rasa em relação ao que poderia ser. Carissa tocou no ponto do acesso à saúde, em despeito à Cobertura Universal à Saúde defendida pela OMS durante toda conferência e também na declaração. Ela disse não ser aceitável que no século XXI mulheres ainda morram em partos por não conseguirem realizar o pré-natal ou acessar o serviço de saúde. Quais são os planos para a implementação da Declaração? Os primeiros artigos da declaração de Astana reafirmam compromissos de Alma-Ata. Ao final diz-se que o êxito da atenção primária à saúde será alcançado a partir do fortalecimento de recursos humanos para a saúde, tecnologias e um financiamento adequado. Antes dos debates nos governos para traçar estratégias mais claras de como os objetivos poderão ser implementados, a declaração irá percorrer um caminho pela OMS em 2019 que a delegação da Fiocruz e os pesquisadores que elaboraram a contribuição da Fundação consideram importante. O texto da declaração não sofrerá mais nenhuma alteração, no entanto, nas etapas subsequentes, existe a possibilidade de os Estados-Membros sugerirem aperfeiçoamentos na declaração através de recomendações aos governos, às agências das Nações Unidas e a própria sociedade civil. Existe uma expectativa que alguns avanços ainda possam ocorrer. O exame do Comitê Executivo da Organização Mundial da Saúde, que deve ocorrer em janeiro do próximo ano, será presidido pela embaixadora Maria Nazareth Farani Azevêdo, do Brasil. A fase final que estará fechando esse ciclo de um ano de discussão da declaração ocorrerá em setembro na Assembleia Geral das Nações Unidas, na Reunião de Alto-nível sobre Cobertura Universal de Saúde, onde a atenção primária à saúde será amplamente discutida. Como foi a sua participação na conferência? Minha participação junto à delegação do Instituto Global Attitude se deu principalmente como ouvinte e em alguns espaços em formatos mais abertos, discutindo os principais problemas relativos ao acesso aos serviços de saúde de jovens e adolescentes nos países participantes, com outras delegações de jovens. A Organização Mundial da Saúde e a Unicef realizaram uma consulta pública onde qualquer um, inclusive os jovens que estariam participando da conferência, responderam perguntas como “Quais as principais barreiras para que adolescentes acessem serviços de saúde?” ou “Como você acha que tecnologias podem ajudar esses jovens a acessarem os serviços e participarem mais da construção da APS local?”. No primeiro dia, o resultado dessa pesquisa foi apresentado. Como ponto positivo, eu citaria que o evento falou muito sobre o papel do jovem no fortalecimento da atenção primária à saúde, o que eu particularmente achei excelente. Para mim, foi importante ver jovens profissionais da atenção primária debatendo os principais desafios da efetivação da APS ao lado referências na temática, ministros da saúde etc. Já como ponto negativo ou desafio a ser melhorado nas próximas conferências, eu citaria que em alguns momentos me incomodou o peso exacerbado dado à necessidade do “empoderamento” de jovens diante de sua própria saúde, pois me pareceu não apenas um incentivo para que esse grupo se empodere, busque conhecimento e seja mais ativo nas discussões de suas comunidades, mas uma responsabilização dos jovens por criar iniciativas autônomas para melhorar nossa saúde, promover e fortalecer a APS em nossa comunidade, sem citar como esse debate e essas iniciativas se realizariam em parceria com os governantes locais, por exemplo. Era como se estivessem buscando soluções individuais para problemas que são coletivos, sem deixar claro o papel dos governos nesse desafio. Quando se falou, em uma mesa sobre tecnologias em saúde, sobre o uso de aplicativos e tecnologias para levar informações de saúde para esses adolescentes e jovens, parei para pensar que acredito que o uso de tecnologia voltada para a saúde é algo fantástico e inovador, mas ao mesmo tempo penso ser difícil discutir isso em uma realidade global, onde apenas metade da população tem acesso à internet em casa. Acho que temos algumas outras barreiras que precisamos ultrapassar, como a capacidade de acesso desses jovens aos serviços de saúde e não apenas oferta de algo. Essa pessoa consegue acessar aquilo que está sendo ofertado a ela? Se a resposta for não, precisamos dar um passo atrás e repensar. Como foi a participação da Fiocruz?

Parte da delegação brasileira em Astana, 2018

A Fiocruz esteve presente com os professores Paulo Buss, Luiz Augusto Galvão e Ligia Giovanella. Acho que a participação da Fiocruz foi fundamental, tanto durante a conferência, quanto nos meses que a antecederam, ainda nas consultas para a formulação da Declaração de Astana. A Fiocruz elaborou um documento junto ao Conselho Nacional de Saúde (CNS) muito importante, que coloca a atenção primária à saúde e os sistemas universais de saúde como compromissos indissociáveis, e reforça a ideia de saúde como um direito humano fundamental, além de apontar estratégias para o seu fortalecimento.  Foi um posicionamento firme e de acordo com outros países das Américas. O Brasil esteve presente na sessão “Acesso a vacinas, medicamentos e produtos de saúde”, na qual o prof. Paulo Buss falou das experiências brasileiras no tema. Além disso, a delegação fez intervenções em todas as sessões que pode, com provocações em relação ao papel do Estado em garantir o acesso a saúde de sua população e outras questões levantadas pelo documento elaborado pela Fiocruz e o CNS. Vale destacar também a presença de Luciani Ricardi, da Assessoria de Assuntos Internacionais de Saúde, do Ministério da Saúde, e do Ronald Santos, presidente do CNS, na delegação de brasileiros da conferência. No próximo ano, acontecerá a 16º Conferência Nacional da Saúde, ou como estamos chamando de 8º + 8º, onde possivelmente muitos debates que ocorreram na Conferência de Astana sejam aprofundados. Ela será muito importante para assegurar os direitos do SUS, diante desse novo quadro político. Leia em HCS-Manguinhos: A promessa da história: Astana, São Paulo e os desafios do Brasil, Carta dos Editores Marcos Cueto e André Felipe Cândido da Silva (v. 25, n.4, out./dez. 2018) Saiba mais: Declaração de Astana Atenção primária e sistemas universais de saúde: compromisso indissociável e direito humano fundamental – Posicionamento brasileiro (Fiocruz e Conselho Nacional de Saúde) para a Conferência de Astana Atención primaria y sistemas universales de salud: compromiso indisociable y derecho humano fundamental Primary Health Care and Universal Health Systems: inseparable commitment and fundamental human right Contribuição da Fiocruz para os debates de temas da agenda da Global Conference on Primary Health Care, Astana, 2018 Fala da diretora regional para as Américas da OMS Carissa Etienne, aplaudida de pé Site da Conferência Global sobre Atenção Primária à Saúde Declaração de Alma Ata (1978) Astana: uma conferência para se ler de trás para frente Paulo Buss, Luiz Augusto Galvão, Ligia Giovanella (Fiocruz), Luciani Ricardi (Ministério da Saúde) e Ronald Santos (CNS) Leia no Blog de HCS-Manguinhos:Atenção Primária à Saúde com progresso social Na Carta dos Editores (vol.22 no.4 out./dez. 2015), Marcos Cueto e André Felipe Cândido da Silva relembram o aniversário de 37 anos da Declaração de Alma-Ata, criticam cortes no apoio a revistas brasileiras e festejam conquistas internacionais ‘Saúde não é mercadoria’ Ligia Giovanella, pesquisadora da Ensp/Fiocruz e membro da Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde da Abrasco, explica por que a Declaração de Astana pode ameaçar o direito humano universal à saúde Leia também: Atenção Primária à Saúde seletiva ou abrangente?, artigo de Ligia Giovanella em Cadernos de Saúde Pública (vol.24, supl.1, 2008) O legado de Alma-Ata, 40 anos depois, artigo de Marcos Cueto em Trabalho, Educação e Saúde (vol.16, no.3, set/dez 2018) A década de Alma-Ata: a crise do desenvolvimento e a saúde internacional, artigo de Fernando Antônio Pires-Alves e Marcos Cueto em Ciência & Saúde Coletiva, vol.22, no.7, jul/2017 The Origins of Primary Health Care and Selective Primary Health Care, artigo de Marcos Cueto no American Journal of Public Health, nov/2004  Como citar este post: Um olhar jovem sobre a Conferência de Astana. Entrevista com Fabiana Pinto Fernandes. Blog de HCS-Manguinhos. Publicado em 24 de novembro de 2018. Acessível em: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/um-olhar-jovem-sobre-astana