Novembro/2013
Marina Lemle Um cabo de guerra entre interesses comerciais e o clamor popular por direitos cidadãos divide o Congresso Nacional quando o assunto é regulamentação da internet. “De um lado, estão aqueles que querem ampliar seus negócios e, do outro, os que desejam uma internet para o aprofundamento da cidadania”, resume a cientista política Rosemary Segurado, defensora do Projeto de Lei 2.126/11, conhecido como o Marco Civil da Internet. Para Rosemary, se aprovado, conforme se espera, na votação marcada para esta segunda-feira, 11 de novembro, o Marco Civil da Internet deverá garantir direitos como liberdade de expressão e comunicação, inclusão digital e privacidade, além de fortalecer a rede como ferramenta para a consolidação da sociedade democrática. Nesta entrevista, a professora do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais da PUC/SP e da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, que em breve terá artigo publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, conta o que descobriu ao comparar as legislações e projetos de lei do Brasil, do Chile, dos Estados Unidos, da Espanha e da França em relação a três aspectos: neutralidade de rede; privacidade, segurança e vigilância; e propriedade intelectual. O que é regulamentação quando se fala em internet? A regulamentação da internet é hoje um dos temas mais polêmicos e complexos, envolvendo governos, sociedade civil, comunidades de internet e setores da iniciativa privada na elaboração de princípios, normas, regras e procedimentos decisórios para a regulamentação de ações que podem ou não ser feitas na rede. Trata-se de um campo de grande disputa, reunindo atores com os mais diversos interesses e posicionamentos sobre a forma de funcionamento da internet e se ela permanecerá com a arquitetura livre, colaborativa e com garantia para a liberdade de expressão. Regulamentação é prerrogativa da Presidência da República, portanto o presidente pode sancionar, promulgar e fazer leis públicas. Diz respeito a um conjunto de instrumentos legais tais como leis complementares, leis ordinárias, decretos, portarias, códigos etc. Quando nos referimos à regulamentação da internet, especificamente o PL 2.126/11, o Marco Civil da Internet, estamos dizendo que ele tem o objetivo de fixar princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da rede no Brasil. É isso que estamos debatendo nesse momento: fixar em lei a garantia de direitos e deveres dos usuários da internet. Por que você acha tão importante a aprovação do Marco Civil da Internet? É fundamental para garantir os direitos dos cidadãos na internet, a liberdade de expressão e comunicação, o aumento da inclusão digital, a privacidade dos internautas e para que a internet não funcione apenas com a visão mercantilista, mas que seja uma importante ferramenta para a consolidação da sociedade democrática. É isso que está em disputa no momento no Congresso Nacional. De um lado, estão aqueles que querem ampliar seus negócios e, do outro, os que desejam uma internet para o aprofundamento da cidadania. Nessa disputa, a intransigência das empresas de telecomunicações pode fazer com que um projeto elaborado de forma tão democrática seja modificado pelos interesses comerciais do setor. Você considera que o Brasil está mais avançado do que muitos países nessa área? Por quê? O Brasil está mais avançado porque um grupo de ativistas que defendem uma regulamentação capaz de manter a internet livre impulsinou um amplo debate na sociedade civil para a garantia da liberdade de expressão e de comunicação e não para criminalização dos internautas, conforme vemos claramente nas legislações francesas e espanhola e em alguns projetos de lei norte-americanos. Segundo Tim Bernes-Lee, criador da web 2.0, o Marco Civil, além de ser aprovado, deve servir de inspiração para outros países e para a discussão de governança global da internet. Em sua pesquisa, você compara a regulamentação da internet no Brasil, Chile, Estados Unidos, Espanha e França sob três prismas: neutralidade, propriedade intelectual e privacidade, vigilância e segurança. Quais as principais diferenças e o que elas significam na prática? A neutralidade de rede garante que a informação, de qualquer formato (texto, video ou som), tenha tratamento isonômico. Se perdermos esse princípio os provedores poderão fornecer pacotes diferenciando as informações. Dessa forma, se eu quiser acessar o youtube teria de pagar um valor maior para esse pacote. Por isso o deputado Molon (PT-RJ) declarou que a perda da neutralidade significa a exclusão dos pobres da rede, pois teriam pacotes com poucos recursos por falta de condições de pagar por pacotes mais caros. A Globo está pressionando para que internautas não postem no YouTube capítulos de novelas, por exemplo. Caso só ela possa fazer essa postagem, poderá cobrar por isso, que hoje é feito sem nenhum custo pelos próprios internautas. Com o Marco Civil, a Globo continuará tendo direitos sobre as novelas que produz e veicula. A questão é não imperdir que alguém disponibilize imagens da novela na internet sem ter nenhum lucro sobre elas. Em relação à neutralidade de rede, o Brasil, com o projeto de lei 2.126/11 do Marco Civil da Internet, e o Chile, com a lei 20.453/11, são os países que apresentam a legislação e o projeto mais avançados do ponto de vista da garantia de direitos civis, de promoção da cidadania e do uso democrático da internet. Apesar das diferentes posições dos representantes da sociedade civil envolvidos no debate, podemos afirmar que ambos os países apresentam posições mais democráticas em relação ao caráter da regulamentação da internet, possibilitando que ela mantenha o princípio livre, aberto e colaborativo. Por outro lado, Espanha e França apresentam-se como os defensores de maior controle dos acessos à rede, e nos Estados Unidos há grandes barreiras jurídicas para impor o fim da neutralidade de rede. Nos EUA, a Primeira Emenda, que garante a liberdade de expressão, tem sido fundamental. Todos os projetos de lei apresentados que ameacem a liberdade de expressão são vetados por meio de barreiras jurídicas. A privacidade, segurança e vigilância encontram as posições mais retrógradas nos EUA, seguidos de França e Espanha. Principalmente após os atentados de 11 de setembro, os EUA adotaram o controle cada vez maior e a espionagem tanto da navegação da internet como das ligações telefônicas, e não somente de seus usuários, mas em vários países do mundo, inclusive o Brasil. França e Espanha acompanham os EUA e defendem a necessidade de maior controle da internet. O projeto do Marco Civil da Internet que está em debate no Congresso brasileiro é fruto de uma consulta popular. Como se chegou a ele? Em primeiro lugar, é importante ressaltar que o Marco Civil não é um projeto de consulta popular, embora tenha sido construído numa plataforma colaborativa, com a participação de diversos segmentos da sociedade civil. Os projetos de iniciativa popular estavam previstos na Constituição de 1988 e foram regulamentados pela Lei 9.709, de 18 de novembro de 1988. Um de seus artigos (o 13º) diz: “A iniciativa popular consiste na apresentação de projeto de lei à Câmara dos Deputados, subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles”. No caso do Marco Civil não existem essas exigências, considerando que não é projeto de iniciativa popular. Qualquer regulamentação deve ser de autoria do poder executivo federal. A diferença é que o governo acatou o projeto elaborado pelo processo colaborativo e a Presidência da República enviou o projeto para a apreciação e votação do Congresso. É importante entendermos que o Marco Civil foi o primeiro projeto de lei a ser elaborado pela plataforma colaborativa e vem servindo de exemplo para outras iniciativas. A elaboração do Marco Civil teve início no segundo semestre de 2009. Foi uma iniciativa da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça em parceria com o Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. O debate foi acompanhado pelo Portal da Cultura Digital do Ministério da Justiça, que disponibilizou versão do anteprojeto elaborado após discussões envolvendo sujeitos sociais como usuários, acadêmicos, parlamentares, instituições públicas e privadas e representantes governamentais interessados no tema. O debate compreendeu as seguintes fases: 1ª.) discussão do texto base elaborado pelo Ministério da Justiça. Nessa fase, prevista para durar 45 dias de discussão, os usuários puderam postar seus comentários e propostas ao texto base. Os comentários ficaram abertos a todos os que acessassem a proposta, e posts mais longos foram destinados a outro fórum do mesmo site para garantir o aprofundamento do debate e contemplar a totalidade das manifestações registradas. Ao final dessa fase elaborou-se a minuta do anteprojeto que foi remetido à segunda fase do debate. 2ª.) Foi semelhante à da primeira fase a discussão da segunda fase sobre a minuta do anteprojeto, que compreendia cinco capítulos: Disposições preliminares (5 artigos); Dos direitos e garantias dos usuários (3 artigos); A provisão de conexão e de serviços de internet (18 artigos); A atuação do poder público (5 artigos); e Disposições gerais (2 artigos) A partir de levantamento realizado no site sobre o processo colaborativo, contabilizamos postagem de cerca de 2.000 comentários aos artigos, incisos e parágrafos. Houve assim participação ativa de diversos segmentos sociais nessa etapa da formulação do Marco Civil. Além do registro dos comentários, os internautas também puderam se manifestar por meio de blog e twitter. Como citar este post [ISO 690/2010]:Um marco para a democracia. Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. [viewed 11 November 2013]. Available from: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/um-marco-para-a-democracia/
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