Por um SUS universal e integral

Julho/2016

Blog de HCS-Manguinhos

Carlos Henrique Paiva

Carlos Henrique Paiva

Além de universal – o que significa oferecer serviços assistenciais a todos sem qualquer custo pelos serviços -, o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro abarca funções como vigilância sanitária e vacinação em massa. A descentralização dos serviços envolve governança, controle e fiscalização de muitos atores em mais de 5 mil municípios. Não é tarefa fácil. “Estamos diante de uma ‘inovação’ que precisa ser ajustada e aprimorada. E apesar das imensas dificuldades, estamos encaminhando esses ajustes”, afirma o professor Carlos Henrique Assunção Paiva, coordenador do Observatório História e Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.

Nesta entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos, Paiva, que é autor de vários artigos e livros sobre história da saúde pública no Brasil, fala sobre os desafios que se colocam para o SUS, entre eles a expectativa de promoção do cuidado integral num ambiente onde predominam práticas fragmentadas, com foco na doença.

O que é e como funciona o SUS?

Temos duas perguntas. A primeira delas pode parecer simples, mas não é, pois há diferentes expectativas e perspectivas sobre o que vem a ser o SUS. Para determinados grupos sociais trata-se apenas da oferta de consultas, exames, procedimentos e leitos hospitalares por parte do governo para as pessoas mais pobres. Para os mais pobres, tudo o que foi dito antes, com a devida ênfase no fato de que, de fato, o SUS significa a única alternativa de acesso a cuidados de saúde para milhares de pessoas. Para grupos econômicos ligados ao setor da saúde pode representar um local de atendimento e realização de procedimentos custosos, estes que a iniciativa privada não vê conveniência em arcar com os seus onerosos custos. Mesmo entre aqueles que militaram diretamente para a sua criação, há divergências quanto à sua identidade: para uns se trata de um sistema de saúde inovador que garantiu formalmente o acesso aos cuidados de saúde, bem como às ações de prevenção e promoção em saúde; para outros militantes seria parte de um processo de instalação de uma sociedade sobre novas bases, mais solidária e, no limite, socialista. Deste modo, responder o que é o SUS, sem cair nos jargões da burocracia de estado e, inclusive, acadêmicos, não é tarefa fácil.

Um pouco menos complicado é responder como funciona. Segundo o IBGE, cerca de 70% dos brasileiros procuram o sistema público como referência para seus problemas de saúde. Não estamos falando apenas de hospitais, mas também da atenção primária, nível assistencial que ampliou bastante sua cobertura na última década. O acesso aos serviços assistenciais do SUS, portanto, se dá de diferentes formas, inclusive por intermédio de hospitais privados conveniados. Sua lógica é descentralizada, o que supõe que os municípios são, e cada vez mais serão, responsáveis pela oferta de serviços, especialmente aqueles que envolvem a atenção primária. Quanto ao seu funcionamento, sem dúvida, a palavra mais importante é “universal”. Significa dizer que ele oferece seus serviços assistenciais de portas abertas, sem qualquer remuneração direta pelos seus serviços. Isso, obviamente, não é pouco, sobretudo se considerarmos outras realidades, especialmente a norte-americana, onde serviço de saúde é sinônimo de fatura a pagar. A despeito da ênfase que atribuímos à assistência, o SUS envolve outros serviços e funções, tais como vigilância sanitária, vacinação em massa e outras atividades fundamentais para a saúde dos brasileiros.

Que inovação o SUS trouxe em relação aos sistemas de saúde de outros países?

Um sistema de saúde não é algo que se dê e se desenvolva em um vazio cultural e político-institucional. Assim, é normal que propostas e ideias eventualmente desenvolvidas e aplicadas em outros contextos sofram, em processo de internalização em outro país, adaptações e/ou interpretações à luz das necessidades ou possibilidades locais. É bom que se diga que esse processo de incorporação e diálogo com outras experiências não necessariamente está fadado a produzir melhorias ou soluções mais inteligentes ou viáveis localmente. De todo modo, é um exercício que devemos fazer, e talvez o façamos independente de nossa vontade. Vejamos: uma “inovação”, digamos assim, que me vem imediatamente à cabeça é o processo de municipalização dos serviços de saúde.

Descentralização, rigorosamente, não era uma pauta nova na experiência brasileira de organização da saúde pública. Um dos resultados mais importantes da Terceira Conferência Nacional de Saúde, de 1963, foi apontar para uma necessária municipalização da gestão da saúde pública. Tal proposta seria meses depois abortada com o golpe militar de 1964. Descentralização não seria uma palavra que os militares levariam muito a sério. Retomaríamos, contudo, essa orientação ao fim da ditadura, então fortalecidos pelo vigoroso movimento de democratização, a que se incluíam os municipalistas.

O que há então de novo? Do ponto de vista jurídico, o processo de descentralização do sistema de saúde, no caso brasileiro, produziu, ao lado dos estados e da União, mais um ente federado: o município. Em termos práticos, reuniram-se condições para a transferência de recursos, mas também obrigações para os prefeitos. Observem, o município transformou-se em uma entidade de gestão do SUS. A questão com a qual precisamos lidar é que estamos falando de mais de 5 mil municípios! Ou seja, estamos diante de uma engenharia político-institucional que envolve a prestação de serviços, mas também a governança, o controle e a fiscalização de muitos atores. Fora as dificuldades que se apresentam, sobretudo com relação aqueles municípios cujas bases fiscal e administrativa são frágeis. Em resumo, estamos diante de uma “inovação” que precisa ser ajustada e aprimorada. Acho que estamos, apesar das imensas dificuldades, encaminhando esses ajustes.

O que mudou entre a teoria e a prática? Há diferença entre o que foi planejado e o que foi e tem sido executado? Quais os principais problemas enfrentados?

Se considerarmos o que já conversamos até agora, já se pode antever que temos muitos problemas. Muitos deles dizem respeito à imensa distância que se estabeleceu entre teoria e prática. Entendo por “teoria” aquilo que foi pensado para operar idealmente; e por “prática”, aquilo que se desenvolve realmente no cotidiano dos serviços ou do sistema de saúde. Ou seja, o que foi pensado ou considerado para funcionar de um jeito, por vezes, passa longe da realidade concreta, aquela que é frequentada pelas pessoas de carne e osso!

Vejamos: vou me ater a um dos aspectos que me parece ser um dos mais importantes nessa questão que chamamos aqui divórcio entre teoria e prática, ok? Observe que o SUS, nos seus chamados princípios doutrinários, lida com uma perspectiva de realização do “cuidado integral”. Resumindo a conversa, seria como imaginar que o usuário fosse atendido na completude de suas necessidades, não reduzido à dimensão biológica ou à doença que eventualmente é portador. No entanto, esse tipo de expectativa tem encontrado como limite tanto um padrão de formação de trabalhadores para a saúde como de exercício do trabalho que se revelam, em termos práticos, pouco afinados com o que se esperava na teoria. Em que pesem os esforços de tentativa de mudança dessa realidade, tudo indica que ainda domina como padrão, no exercício do trabalho em saúde, práticas fragmentadas, cujos focos são a doença.

Esse tipo de divórcio entre teoria e prática, ou seria melhor dizer entre expectativas e a realidade, não é nada irrelevante. Ele compromete e impõe sérios limites, em termos concretos, para a realização e legitimação do SUS. Como, para citar um exemplo, se pode desenvolver no âmbito da Estratégia Saúde da Família atividades profissionais em equipe se boa parte dos médicos é formada para atuar isoladamente?

Como a história pode contribuir para o aprimoramento das políticas públicas de saúde?

Como já conversamos, políticas de saúde, como outras políticas, não são formuladas e implementadas em vazios político-institucionais, econômicos e culturais. Sendo assim, são também, a um só tempo, estimuladas e constrangidas pelos seus contextos geradores, dos quais são parte inseparáveis. Por vezes, contudo, prevalece um certo senso comum que considera os assuntos da saúde, por serem o domínio de médicos e outros especialistas, uma região de problemas e decisões assépticas e técnicas, isto é, desprovidas de orientações morais, ideológicas, políticas e econômicas. Tanto é assim que, mesmo entre formuladores e implementadores de políticas, parece prevalecer, por vezes, uma perspectiva demasiado normativa, talvez sob a expectativa de que bastaria fazer um correto diagnóstico da realidade para se saber, efetivamente, o que fazer e implementar. Ou seja, identificada a necessidade de saúde, bastaria mobilizar os recursos necessários e pronto.

Infelizmente a realidade tem se mostrado um pouco mais complicada do que essa adorável miragem. O fato é que o êxito das políticas e orientações de saúde depende, entre outras coisas, do contexto no qual se inserem. Entenda-se por contexto, por exemplo, a existência de uma base social e política, no sentido mais amplo, em apoio àquela política ou orientação de saúde. Políticas de saúde, portanto, não dependem exclusivamente de sua “tecnicalidade”, mas, em boa medida, das condições e do ambiente em que se circunscrevem. Tal ambiente, por sua vez, é fruto de um certo processo que se permitiu ao longo do tempo. O tempo, entendido como um complexo processo de acontecimentos e interação entre pessoas, é a matriz que condiciona à vida coletiva.

Nessa linha de raciocínio, podemos dizer que nossas instituições, crenças, hábitos e orientações políticas e econômicas sejam partes, e decorrentes, de condições históricas específicas e concretas. O mesmo raciocínio pode e deve se aplicar às políticas de saúde, às orientações “técnicas” setoriais do campo, aos padrões de formação e realização do trabalho profissional, enfim, às questões que organizam o setor. Para que, afinal? Ora, não é possível compreender certas injunções, limites e desafios para as políticas setoriais da saúde sem que consideremos as diferentes circunstâncias institucionais e constrangimentos políticos, mais gerais, que conformam a saúde. Por exemplo, quem pode pensar os desafios colocados para uma política como o Mais Médicos sem deixar de considerar o histórico déficit regulatório do trabalho médico por parte do Estado brasileiro? Impossível! Os limites de iniciativas como esta, portanto, se situam, muitas vezes, diante de problemáticas que estão colocadas em uma dimensão macro e histórica.

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Leia em HCS-Manguinhos:
Edição sobre o SUS (vol. 21, n.1, jan.-mar. 2014)

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