Março/2016
Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos
A adolescente pretendia tomar uma injeção anticoncepcional com a receita prescrita para uma amiga, mas o preço a fez desistir. Também não usou camisinha porque o namorado era antigo conhecido. Engravidou numa das primeiras relações. Para abortar, ingeriu e inseriu na vagina comprimidos de Cytotec. Quinze dias depois, assustada com o resultado de um exame de ultrassom que teria mostrado um “hematoma no feto”, tomou e inseriu mais comprimidos, além de beber chá de ervas abortivas. Passada outra quinzena, novo exame indicou a presença de saco gestacional em seu útero. Foi encaminhada para curetagem.
Os caminhos percorridos por esta e outras dez jovens internadas para tratar de abortos provocados e espontâneos foram investigados numa pesquisa que combinou métodos qualitativos e quantitativos para estudar as relações entre as pacientes e a instituição hospitalar. O estudo, de cunho antropológico, foi feito de 2002 a 2003 numa importante maternidade pública e hospital-escola de Salvador, Bahia. À época, curetagens pós-aborto representavam cerca de 20% das internações, quase todas de jovens.
Foram feitas entrevistas com pacientes e profissionais de saúde. Estes também responderam um questionário com perguntas sobre aborto. O estudo concluiu que a discriminação contra as mulheres que abortam não parte, apenas, de alguns profissionais, mas está integrada à estrutura, à organização e à cultura institucionais, dificultando a colocação em prática do discurso institucional “pró-humanização”.
No artigo “O dilema de uma prática: experiências de aborto em uma maternidade pública de Salvador, Bahia”, publicado em HCS-Manguinhos (vol.23 n.1, jan./mar. 2016), as autoras Cecilia McCallum, Greice Menezes e Ana Paula dos Reis descrevem problemas enfrentados pelas usuárias do sistema de saúde, desde a dificuldade de acesso a uma vaga até situações de discriminação sofridas durante a internação, como o retardo no atendimento das solicitações e a desqualificação das suas queixas.
“Quando a mulher chega à conclusão de que o aborto é a ‘única saída’, já considerou uma variedade de aspectos negativos, como o fato de o aborto ser um crime, as dificuldades de conseguir os meios para o abortamento, a oposição de parceiros e familiares e a informação de que os procedimentos adotados podem causar algum dano à saúde. É nesse quadro negativo que se insere a relação das mulheres com as instituições de saúde. Relatos de sofrimento físico e emocional – que antecipou a internação e se prolongou uma vez admitidas no hospital – ressaltam das histórias das entrevistadas”, contam.
Apesar de proibido, o aborto é amplamente praticado no Brasil. Registros do Sistema de Informações Hospitalares do Ministério da Saúde relativos a internações hospitalares femininas por abortamento no Brasil no período de 1996 a 2012 sugerem a ocorrência de quase um milhão de abortos por ano. O aborto está entre as quatro principais causas de mortalidade materna no país.
“A criminalização do aborto reforça as fortes desigualdades sociais às quais estão expostas as mulheres brasileiras. Diante de uma gravidez não prevista, apenas pequena parcela delas pode arcar com os custos de uma intervenção em clínica privada; as demais, a maioria da população feminina, recorrem a uma diversidade de técnicas inseguras, algumas, letais”, afirmam as autoras. O cuidado prestado pelos profissionais de saúde está distante das normas nacionais e internacionais da atenção ao aborto.
No país, as mulheres ainda enfrentam sérios obstáculos ao acesso a contraceptivos reversíveis e seguros na rede pública de saúde, embora seja alta a prevalência da esterilização feminina.
Leia em HCS-Manguinhos:
O dilema de uma prática: experiências de aborto em uma maternidade pública de Salvador, Bahia, artigo de Cecilia McCallum, Greice Menezes e Ana Paula dos Reis (vol. 23, n.1, jan./mar. 2016)
Acesse o sumário da edição sobre medicalização dos corpos brasileiros (vol. 23, n.1, jan./mar. 2016)
Reprodução, sexualidade e poder: as lutas e disputas em torno do aborto e da contracepção no Rio de Janeiro, 1890-1930, artigo de Marinete dos Santos Silva (vol.19, n.4, dez 2012)
Leia ainda no blog de HCS-Manguinhos:
Epidemia de zika remete à rubéola e à discussão sobre aborto como ato médico
Ilana Löwy, pesquisadora do Instituto Nacional de Saúde e de Pesquisa Médica de Paris, conta como os surtos de rubéola estimularam a descriminalização do aborto na Europa
Como citar este post:
Depois do aborto, a discriminação. Blog de HCS-Manguinhos. [viewed 31 March 2016]. Available from: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/depois-do-aborto-a-discriminacao/