Numa véspera de voo, fui checar as previsões da meteorologia e li
a expressão ‘tempo severo’. Estava ilustrada por um desenho
de nuvens carregadas. Apesar da má notícia, gostei de ‘tempo severo’.
É sempre bom quando termos técnicos soam poéticos.
Humberto Gessinger, em Mapas do acaso: 45 variações
sobre um mesmo tema, ed. Belas-Letras, 2011
Referências à ciência e à tecnologia não são incomuns na música brasileira. No rock, elas aparecem com frequência na obra de Humberto Gessinger, que ficou famoso com a banda Engenheiros do Hawaii. Os próprios títulos de algumas canções – “Surfando karmas & DNA”, “Fusão a frio”, “Armas químicas e poemas” – mostram que as reflexões do compositor sobre a pós-modernidade são pontuadas por temáticas científicas.
No artigo Sentir com a inteligência, pensar com a emoção: ciência e tecnologia em canções de Humberto Gessinger, publicado na revista HCS-Manguinhos (vol. 22, n.3, jul.-set. 2015), Rafael Cava Mori revela como a ciência e a tecnologia são incorporadas ao conteúdo poético das composições e faz uma análise discursiva de algumas canções registrando a presença de termos do linguajar das ciências naturais (como átomo, vírus, poluição, espaço sideral), palavras relacionada a aparatos e suas formas de operação (ligo/desligo, antena, carro, piloto automático, satélite) e menções a aspectos da cultura contemporânea relacionados com tecnologias, especialmente as voltadas para a informação e comunicação (filme, TV, manchetes, canção, imagens, walkman).
“As abundantes canções de Humberto Gessinger com temáticas científico-tecnológicas exemplificam como ciência e arte se podem relacionar de modo produtivo”, afirma o autor.
Mori examina as letras à luz dos estudos do soviético Mikhail Bakhtin (1895-1975), discutindo como o Gessinger coloca-se em contato – ou atrito – com os discursos produzidos no mundo a seu redor. Para isso, recorre a conceitos como enunciado, palavra, gêneros discursivos, dialogismo, sentido e significado, discurso poético e discurso prosaico. “Desejamos compreender como se entrelaçam, no interior da criação artística, discursos heterogêneos que, formando híbridos, explicitam a influência recíproca entre a arte e as condições sócio-históricas em que é produzida”, explica.
Para Mori, mais que acompanhar a popularização de termos como genoma e DNA, as letras problematizam questões controversas numa perspectiva filosófica. Ele destaca, por exemplo, que expressões relacionadas à tecnologia de combate – bombas, armas, mira a laser, teleguiada, mísseis, radares – são frequentes nos primeiros discos do Engenheiros do Hawaii, em canções que traduziam a tensão de um cenário em que o conflito nuclear parecia iminente.
Leia em HCS-Manguinhos:
Sentir com a inteligência, pensar com a emoção: ciência e tecnologia em canções de Humberto Gessinger, artigo de Rafael Cava Mori (vol. 22, n.3, jul.-set. 2015)
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