Agosto/2020
Beatriz Teixeira Weber *
Os pesquisadores que trabalham a partir de estudos sistemáticos sobre a situação da propagação de doenças têm uma contribuição indispensável na compreensão do quadro de pandemia em que estamos inseridos. Essas pesquisas são produzidas principalmente nas universidades, que cumprem um papel importante de estudo, mas que tiveram suas atividades precarizadas de forma assustadora nos últimos tempos. No momento em que estamos, elas evidenciam sua importância nos processos de compreensão do vírus. Essas pesquisas incluem estudos clínicos, assim como estudos geográficos, sociológicos, antropológicos e históricos, além da produção de equipamentos para uso no sistema de saúde. Balanço divulgado pela Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) indica que vêm sendo desenvolvidas 1.265 pesquisas específicas sobre o novo coronavírus.
As medidas adotadas no Rio Grande do Sul foram pensadas a partir de estudos realizados em instituições federais, coordenados pela Universidade Federal de Pelotas, com entrevistas e testagem de pessoas sorteadas em 9 cidades. Esses estudos indicaram os procedimentos de isolamento. Um outro grupo da UFPel, Grupo de Estudos Covid-19 Estudos Geográficos, do Laboratório de Estudos Urbanos e Regionais da UFPel, permitiu compreender que ocorrem maneiras distintas de transmissão comunitária do Covid-19 no estado, tendo em vista a existência de estruturas territoriais díspares entre o sul e o norte do Rio Grande do Sul no que se refere à organização dos municípios. Na porção sul, devido à existência de municípios com extensões territoriais maiores, a transmissão comunitária fica significativamente circunscrita (mas não exclusiva) a uma dispersão intra-municipal. Diferentemente, a porção central e principalmente norte do Rio Grande do Sul, além da transmissão intra-municipal, visualiza-se uma significativa estrutura de propagação para municípios próximos tendo em vista a proximidade e integração econômica entre essas localidades.
Na semana a partir do dia 11 de maio de 2020 foi adotado um plano de distanciamento controlado que dividiu o estado em 20 regiões. As decisões sobre a mobilidade nas regiões estão de acordo com a taxa de transmissão da doença e capacidade de atendimento de cada local. A proposta é de ações de prevenção específicas de acordo com o tipo de atividade econômica e sua relevância levando em conta vários critérios (foram usadas publicações norte-americanas como consultoria americana McKinsey & Company e Massachusetts Institute of Technology). Reconhecer diferentes regiões e setores está sendo um dos desafios, enfrentado com o que a produção científica pode oferecer. É uma experiência a ser considerada.
As maiores dificuldades existentes são decorrentes das desigualdades sociais, que fazem com que a situação da pandemia atinja de forma diferente os grupos envolvidos, apesar do vírus poder chegar a todos. Isso torna evidente que é preciso pensar as dinâmicas das relações entre sistemas sociais e naturais, em conjunto com ciências biológicas, exatas e sociais. A situação de propagação de epidemias, a falta de serviços de atendimento à população, a precariedade dos recursos e a necessidade de verbas especiais em situações de emergência eram as mesmas dificuldades que percorreram o século XIX, republicano ou imperial, adentrando nos séculos XX e XXI. O quadro já é bastante precário e não houve alterações consideráveis sobre essas condições, vide os resultados que encontramos ainda hoje. A diferença depois da Constituição de 1988 é o que o Brasil possui um Sistema Único de Saúde que permite a ampliação dos serviços para todos.
Há uma série de obstáculos a serem superados, como a adesão às medidas preventivas, limites da capacidade de testagem e o risco de sobrecarga na rede de atendimento com aproximação do inverno, o que já ocorria na região do Rio Grande do Sul. Os pesquisadores da história e de outras ciências sociais possuem o papel de realizar as reflexões possíveis que ajudem no processo de compreensão das doenças. Elementos culturais fazem com que os cidadãos tenham dificuldade de entender e aceitar o isolamento como uma das medidas para evitar um caos pior, como já ocorreu em tantos outros episódios de disseminação de doenças. Há um conjunto complexo de elementos políticos e de compreensão do papel de cada um.
A compreensão das tradições que informam a população de cada região pode oferece perspectivas que ajudam a entender o significado que a doença, o medo e a cura assumem para as sociedades. São perspectivas religiosas, sobre o papel dos cuidadores, sobre o papel da medicina e das medidas orientadas por essa área de conhecimento. O papel do historiador, e dos cientistas sociais em geral, é compreender esses significados, levando em conta o humano de forma mais integral e ampla. Nenhum fenômeno social pode ser minimizado com respostas simplificadoras.
O fato de estarmos vivenciando um fenômeno global, numa situação epidêmica épica pela dimensão que assumiu e pela rapidez da propagação, não exime a necessidade de pensarmos a partir das situações de compreensão da população em que os fenômenos se inserem. Não há padrões de solução individual, somente soluções coletivas podem oferecer alguma alternativa, pois a adoção de medidas de cada um afeta o conjunto em que todos estão inseridos. O desafio é entender como as pessoas reagem ao medo da doença, à disseminação de informações falsas, como os indivíduos recebem e processam as informações, fazendo com que compartilhem ou não procedimentos considerados mais convenientes. A percepção desses elementos gera políticas mais gerais, que conseguiriam atingir ao conjunto social. Precisamos pensar os contextos que possibilitam e justificam por que várias pessoas aceitam comportamentos absurdos, mas entendem compreensível a adoção de medidas que minimizem a disseminação da doença. O Brasil é uma sociedade ainda marcada pelos significados que o uso da escravidão nos trouxe, na desigualdade social, nos comportamentos adotados, na compreensão da política, na percepção das diversas tradições religiosas, na forma como entendemos os significados das doenças. À história e as demais ciências sociais, com uma reflexão sistemática, cabe pensar esses elementos para entendermos a sociedade brasileira.
* Beatriz Teixeira Weber é professora do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria
Como citar este post:
WEBER, Beatriz Teixeira. Pelos significados da vida. Blog de HCS-Manguinhos. Publicado em 14 de agosto, 2020. Disponível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/pelos-significados-da-vida
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Positivismo e ciência médica no Rio Grande do Sul: a Faculdade de Medicina de Porto Alegre. Fev 1999, vol.5, no.3
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