Ana Maria Barbour, jornalista e historiadora, integrante do projeto Pauliceia 2.0.
Pesquisadores da Unifesp (Campus Guarulhos e São José dos Campos), Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e da Emory University apresentam, em artigo publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos (v. 27, n. 4, out/dez 2020), resultados parciais do projeto Pauliceia 2.0, uma parceria que também envolve o Arquivo Público de São Paulo e tem financiamento da Fapesp. Disponível na internet em versão Beta (www.pauliceia.dpi.inpe.br), a plataforma permite o mapeamento colaborativo da história da cidade de São Paulo entre 1870 a 1940. A iniciativa, da forma como foi estruturada e até onde se tem notícia, é inédita e um estudo de caso para se discutir a relação entre tecnologias digitais e métodos históricos.
Por meio da plataforma Pauliceia 2.0, qualquer pessoa interessada pode alimentar os seus dados espacializáveis, tendo como resultado uma visualização de sua própria pesquisa, podendo usá-la em produções científicas, como monografias, artigos, teses etc. Ao mesmo tempo, a cada alimentação realizada, a base comum é enriquecida, transformando-se em um acervo de material de pesquisa passível de dar suporte a reflexões e debates historiográficos. A interface inclui ainda um geolocalizador do passado, permitindo que o usuário localize endereços do passado.
O recorte espaço-temporal (1870 a 1940) foi escolhido por corresponder a um momento de transformações particularmente radicais, de profundidade e intensidade quase únicas na história. Naquele período, a população da capital paulista passou de 31.385 a 1.326.261 habitantes. A cidade que emergia era uma metrópole industrial, e se distanciava do burgo de estudantes de meados do século anterior na mesma medida em que a modernidade se afastava da pré-modernidade. “Justamente por isso, o recorte proposto possui uma considerável densidade de produção historiográfica, o que lhe confere uma justificativa adicional para a sua escolha, agora de caráter tático. Quanto maior e mais produtiva a comunidade atinente a um projeto colaborativo, maiores as suas chances de prosperar”, explicam os dez autores que assinam a publicação: Luis Ferla, Karine Reis Ferreira, Fernando Atique, Andrew G. Britt, Karla Donato Fook, Jeffrey Lesser, Cristiane Miyasaka, Daniela Musa, Thomas D. Rogers e Nandamudi Vijaykumar.
A construção da plataforma envolveu a elaboração de um banco de dados com endereços, a partir do qual a ferramenta faz a geolocalização. À equipe de historiadores do projeto – que compõem o grupo de pesquisa Hímaco – História Mapas e Computadores, ligado à Unifesp de Guarulhos (SP) – coube o levantamento e organização da documentação que permitisse a alimentação do banco. Já a equipe computacional se dedicou ao desenvolvimento do algoritmo para fazer a ferramenta funcionar adequadamente.
No artigo, a experiência do grupo com o projeto é abordada a partir de três aspectos inerentes às humanidades digitais. O primeiro diz respeito às tensas relações entre história e tecnologia. É inevitável, no mundo atual, confrontar a influência de recursos digitais no trabalho dos pesquisadores em humanidades. Se, por um lado o uso dessas tecnologias nessas áreas se difunde cada vez mais, e com elas novas possibilidades de investigação e de circulação dos seus resultados se afirmam, por outro lado desafios consideráveis se impõem, relacionados a sérias incompatibilidades entre o mundo dos computadores e suas exigências maquínicas e o mundo das humanidades, sempre à volta com as subjetividades e as ambiguidades inerentes à fabricação e interpretação da vida social.
“Se assim é para as ciências humanas em geral, mais crítica é a situação dos historiadores. Não apenas o objeto da história apresenta nuances, ambiguidades e incompletudes (Bodenhamer, 2008, p. 222), como ele é inerentemente fugidio, com o seu centro de gravidade não mais no presente, mas no passado”, ponderam os pesquisadores.
O segundo aspecto trata dos desafios do trabalho aberto e colaborativo, princípio no qual o grupo aposta para superar dificuldades que o projeto envolve, como, por exemplo, a ampliação da área geográfica coberta pela plataforma (que hoje inclui somente o centro da cidade); a inserção de dados por meio da criação de novas camadas; e testes de funcionamento da própria plataforma. Segundo o artigo, a colaboração é um parâmetro ativo e visível na narrativa e na estruturação das humanidades digitais. O trabalho científico, em geral, se desenvolve cada vez mais em rede, e as humanidades partilham dessa tendência, claramente suportada e estimulada pelas tecnologias digitais. Esse fenômeno vai muito além do universo acadêmico e científico, como projetos do tipo da Wikipedia e do Open Street Maps claramente demonstram. O que ficou conhecido como “crowdsourcing” sintetiza o novo cenário aberto e colaborativo que a rede mundial de computadores hoje comporta. Essa realidade traz questionamentos sobre as fronteiras tradicionais que historicamente separaram o produtor do consumidor do conhecimento. Assim, os autores chamam a academia para dialogar com o fenômeno, ao invés de negá-lo, procurando explorar as suas possibilidades mais profícuas e evitar o isolacionismo.
O terceiro ponto de reflexão que o artigo traz diz respeito ao caráter provisório que os resultados das pesquisas em humanidades digitais assumem, passando por processo de constante reavaliação e aprimoramento. Nesse sentido se distancia do “modelo clássico do deadline implacável que condicionou tradicionalmente a divulgação do conhecimento produzido”. No caso do projeto Pauliceia 2.0, da maneira como foi concebida e se encontra disponível, a plataforma é plenamente acessível a qualquer pessoa interessada, seja apenas para consulta, seja para alimentação de dados. A situação traz a polêmica sobre o controle de qualidade do que ali será colocado, sem que para isso se desencoraje a participação dos usuários. O grupo Hímaco apostou em um modelo mais livre, posto que a quantidade maior de colaboradores tem também uma dimensão qualitativa, onde “mais é melhor”.
“Isso não significa, no entanto, que não foram desenvolvidas estratégias e concepções para minorar o risco apontado. Em primeiro lugar, a responsabilidade pela qualidade e confiabilidade dos dados alimentados à plataforma é do próprio usuário que os alimentou, como se dá com qualquer publicação assinada. Em segundo lugar, há uma aposta da equipe do projeto de que o próprio caráter aberto e colaborativo da plataforma funcione como um controle da qualidade do que for alimentado”, esclarecem os pesquisadores.
Por último, o artigo discute os custos não reconhecidos da ciência aberta. Isso porque os pesquisadores envolvidos em projetos colaborativos acabam normalmente sobrecarregados de trabalho, pois além de atividades de pesquisa familiares ao seu cotidiano profissional, soma-se a necessidade de organizar e praticar a interlocução com a comunidade. “Porém, os sistemas avaliativos institucionais da produção do trabalho do docente e do pesquisador não valorizam adequadamente os resultados de muitos do projetos de humanidades digitais. De uma forma geral, os critérios de avaliação ainda estão presos ao paradigma do texto escrito e definitivo publicado em papel, vigente desde o aparecimento das primeiras revistas científicas no século XVIII (Fitzpatrick, 2012)”, diz o artigo.
Com isso, a plataforma Pauliceia 2.0, como resultado de pesquisa, não encontra muita guarida em tabelas de avaliação de produção, com valoração no mais das vezes bastante distante do que se atribui a um artigo em revista especializada, por exemplo. Além disso, há outras incompatibilidades entre tais projetos e as formas tradicionais de divulgar os resultados de pesquisas: a dificuldade em se publicar artigos com muitos co-autores (Edmond, 2016, p. 55).
De acordo com os pesquisadores, a experiência do projeto Pauliceia 2.0 não dá conta das possibilidades da presença das tecnologias digitais no ambiente de trabalho do historiador, nem tampouco dá subsídio para refletir acerca de toda a complexidade das transformações metodológicas e epistemológicas envolvidas. Mas é pretensão da equipe do projeto que, em alguma medida, ela pode contribuir para o debate.
“No estágio em que se encontram as humanidades digitais, particularmente no Brasil, o intercâmbio de perspectivas e de aprendizados resultantes de iniciativas pioneiras e isoladas pode ajudar significativamente na superação dos desafios envolvidos. Afinal de contas, é da ética da ciência aberta o compartilhamento não apenas dos resultados, mas dos problemas e das soluções que vieram antes deles”, concluem.
Referências bibliográficas
BODENHAMER, David. History and GIS: implications for the discipline. In: KNOWLES, Anne (ed.). Placing history: how maps, spatial data, and GIS are changing historical scholarship. Redlands: Esri Press, 2008. p. 219-233. 2008.
EDMOND, Jennifer. Collaboration and Infrastructure. In: SCHREIBMAN, Susan; SIEMENS, Ray; UNSWORTH, John. (eds). A new companion to Digital Humanities. Malden: Blackwell. p. 54-65. 2016.
FITZPATRICK, Kathleen. Beyond Metrics: Community Authorization and Open Peer Review. In: Gold, Matthew K. (editor). Debates in the Digital Humanities. Minneapolis: University of Minnesota Press. p. 452-459. 2012.
Leia em HCS-Manguinhos:
Pauliceia 2.0: mapeamento colaborativo da história de São Paulo, 1870-1940, artigo de Luis Ferla, Karine Reis Ferreira, Fernando Atique, Andrew G. Britt, Karla Donato Fook, Jeffrey Lesser, Cristiane Miyasaka, Daniela Musa, Thomas D. Rogers e Nandamudi Vijaykumar (v. 27, n. 4, out/dez 2020)