Setembro/2023
A complexa relação entre ciência, sociedade e política permeia o conteúdo do suplemento temático Covid-19 na América Latina, que a revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos acaba de lançar (v. 30, supl. 1, 2023). Editado por Claudia Agostoni, Karina Ramacciotti, Carlos Henrique Paiva e Marcos Cueto, o número especial reúne estudos originais e relevantes que, a partir da pandemia, estabelecem um diálogo entre passado e presente. Leia a Carta dos Editores no SciELO em inglês ou espanhol ou a versão em português aqui no Blog de HCS-Manguinhos:
Covid-19 na América Latina: conflitos, resistências e desigualdades
A pandemia de Covid-19 intensificou profundas desigualdades sociais nos países em desenvolvimento, revelou respostas oficiais insuficientes, expôs as desigualdades geopolíticas que separam os países ricos e em desenvolvimento e provocou debates acalorados sobre o corpo humano, a doença, a prevenção e o estado dos sistemas de saúde. Em cada um destes debates, a ciência e a política foram objeto de discussões acirradas que, em certos países, dividiram ainda mais a sociedade. A pandemia também revelou a coexistência de precariedade, tensões e resiliências de longa data nos sistemas de saúde. Neste sentido, podemos citar a desigualdade na distribuição de insumos, inicialmente máscaras e equipamentos de proteção individual e, num segundo momento, vacinas, assim como a presença e distribuição desigual, ineficaz ou inexistente de recursos humanos capacitados e com condições de trabalho dignas. Da mesma forma, analistas chamaram a atenção para a existência de um padrão de resposta estatal à pandemia, inicialmente centrado quase exclusivamente no hospital, em detrimento da atenção primária à saúde (Giovanella et al., 2021), cujo processo de consolidação institucional, sua capilaridade territorial e sua importância no controle de doenças existiam antes da pandemia em países como o Brasil (Paiva, Pires-Alves, 2021).
A América Latina também foi o epicentro da covid-19 durante grande parte de 2020 e 2021, tanto pelo maior número de casos e maior letalidade, como por acolher a maior percentagem de infectados em relação à sua população a nível global. O resultado indica que é uma das regiões do mundo com acentuada desigualdade social e ainda dependente do ponto de vista biomédico. A região também foi palco de casos extremos. Nesse sentido, podemos citar o abandono de enfermos e cadáveres como aconteceu nas ruas de Guayaquil, Equador, e os enterros coletivos em Manaus, Brasil, no início de 2020. Respostas governamentais marcadas pela negligência e o genocídio como no Brasil de Jair Bolsonaro; os hospitais em colapso e os escassos recursos que atingiram o limite das suas capacidades; as tentativas frustradas de opor a saúde pública à economia; os esforços extenuantes contra a adversidade por parte de profissionais de saúde, famílias de pacientes e ativistas; a glorificação de remédios mágicos, mas ineficazes, como a cloroquina; corrupção na aquisição de vacinas; e múltiplas situações em que primeiro foram glorificados os profissionais de saúde, que depois foram submetidos à violência por serem considerados veículos de contágio. Com especial intensidade, assistiu-se a um colapso dos recursos humanos nos países da região que revelou um histórico de negligência e minimização deste elemento humano central dos cuidados de saúde e da prevenção (Agostoni, 2021; Ramacciotti, 2023).
O objetivo deste suplemento de História, Ciências, Saúde – Manguinhos é reunir estudos originais e relevantes que, a partir da covid-19, estabeleçam um diálogo contextualizado entre o passado e o presente. Portanto, os artigos discutem como a complexa relação entre ciência, sociedade e política é ampliada nos desastres sanitários; registam os desafios dos profissionais de saúde; identificam paralelos e divergências nos principais problemas mencionados acima e afirmam a importância de uma perspectiva histórica comparada para analisar e compreender as epidemias e a saúde pública contemporânea. Além disso, apresentam reflexões detalhadas sobre as interações entre ciência, saúde e sociedade em situações de crise, o que se estima ser de interesse para diversos historiadores e outros cientistas sociais que no futuro pretendam aprofundar a sua compreensão e análise histórica da pandemia.
Essas obras têm uma originalidade adicional. Foram realizadas ao mesmo tempo em que a pandemia se desenvolvia e se intensificava, momento em que as reações e respostas individuais, coletivas e institucionais eram incertas, divergentes e contraditórias. Portanto, outro elemento que os artigos abordam é a multifacetada percepção social e institucional da nova doença, o que reafirma que a doença do coronavírus é muito mais do que um evento biomédico. Portanto, as representações, práticas, imaginários e debates em relação à etiologia, disseminação e formas de contenção da nova doença fazem parte dos estudos aqui apresentados.
As medidas de distanciamento e isolamento social para impedir a propagação do coronavírus afetaram a vida social e econômica e as atividades de investigação. Com o encerramento de bibliotecas e arquivos, as tarefas das ciências sociais foram interrompidas. Sem dúvida, a digitalização de alguns arquivos, sejam eles de acesso aberto ou privados, permitiu que alguns pesquisadores mantivessem suas linhas de trabalho. Contudo, para aqueles que vinham trabalhando diferentes aspectos históricos e sociológicos dos processos sociais, políticos e culturais relacionados ao adoecer, à cura e ao cuidado, muitas das questões e referenciais teóricos utilizados para outras sociedades e períodos foram colocados em discussão a partir de março de 2020 (Campos, Perdiguero-Gil, Bueno, 2020; Hochman, Birn, 2021). Da mesma forma, o coronavírus gerou uma seção especial no blog da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, onde importantes historiadores da região publicaram reflexões sobre a pandemia. Posteriormente, versões elaboradas desses textos foram publicadas na revista. A revista também acolheu outros trabalhos, incluindo um importante debate em que participaram alguns dos editores convidados deste suplemento (Agostoni, Ramacciotti, Lopes, 2022).
A memória de outras pragas e doenças, bem como as graves assimetrias na distribuição global dos recursos médicos, estiveram mais uma vez presentes, e é precisamente este presente que renovou as questões sobre o passado e nos convidou a compreender como outras sociedades, noutros tempos, enfrentaram fenômenos semelhantes. Por isso, e como mostra este suplemento, coletamos, em tempo real, dados de entrevistas com diferentes atores sociais, imprensa periódica, pesquisas e análises de regulamentos para colocá-los em diálogo com os referenciais teóricos das ciências sociais. Muitas destas formas de recolha de informação eram diferentes das habituais; por exemplo, a maior parte das entrevistas foram realizadas em formato virtual, o que sem dúvida abre novas formas de pensar a metodologia em tempos excepcionais e nos convida a refletir sobre o lugar da história e das ciências sociais para dar respostas a situações críticas e renovar agendas de investigação.
Esperamos que estes estudos, que abrangem alguns dos países da região e as questões que atravessaram a pandemia, sejam uma contribuição para a compreensão de como a covid-19 marcou a América Latina.
Como citar:
Agostoni, C., Ramacciotti, K., Paiva, C. H., & Cueto, M.. (2023). COVID-19 EN AMÉRICA LATINA: CONFLICTOS, RESISTENCIAS Y DESIGUALDADES. História, Ciências, Saúde-manguinhos, 30, e2023028. https://doi.org/10.1590/S0104-59702023000100028
Acesse o suplemento Covid-19 na América Latina: conflitos, resistências e desigualdades (HCS-Manguinhos, v. 30, supl. 1, 2023)