Controvérsias e consensos: olhares da história para a ciência

Flávia Lobato | Portal de Periódicos Fiocruz (texto e imagem)

Pouco menos de um mês: foi o tempo que durou o debate entre duas autoridades brasileiras em torno de uma epidemia. A controvérsia envolveu Nuno de Andrade, diretor-geral de Saúde Pública, e Jorge Pinto, diretor de Higiene e Assistência Pública do Estado do Rio de Janeiro, em 1899. O motivo da discórdia, travada pelas páginas do Jornal do Commercio, eram as medidas do governo federal para evitar a chegada da peste bubônica ao Brasil, epidemia que à época tomava a cidade do Porto (Portugal). Os atores desta polêmica divergiam quanto ao nível de gravidade da doença, suas consequências para a população e a economia do país, e sobre a necessidade de medidas rígidas ou liberais para combatê-la.

Este é o objeto do artigo “Não é meu intuito estabelecer polêmica”: a chegada da peste ao Brasil, análise de uma controvérsia, 1899, publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos (vol. 20, sup.1, nov/2013). O trabalho é assinado pelos pesquisadores Dilene Raimundo do Nascimento (Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz) e Matheus Alves Duarte da Silva (Universidade de São Paulo), que relatam como Andrade e Pinto usam argumentos científicos, políticos e econômicos para defender ou se opor às medidas, respectivamente. Trata-se de um dos primeiros atos da história da peste bubônica no Brasil. Pouco depois, a doença chegaria ao país — começando pelo porto de Santos (SP), seguindo pelo Rio de Janeiro (só sendo combatida com sucesso a partir de 1903, com casos até o final da primeira década do século XX), e avançando para outros estados como São Luís do Maranhão, Porto Alegre e Recife.

Em meio à discussão científica e política, a peste chega e avança pelo Brasil

Responsável pela defesa do Brasil contra moléstias estrangeiras, Andrade considerou a alarmante a notícia da chegada da peste bubônica à cidade do Porto, dadas as estreitas relações de comércio e a mobilidade de pessoas entre os países. Via ressurgir a peste na Europa, quase 180 anos depois da epidemia de Marselha (1720). Os autores da pesquisa lembram que “(…) a peste esteve ativa em outras partes do mundo, especificamente na China e na Índia, onde continuava apresentando, na maioria das vezes, a face aterradora pela qual fora temida, durante séculos, na Europa. Foi durante a vigência dessas epidemias na Ásia que as primeiras descobertas científicas foram feitas.”

Assim, como representante do governo federal brasileiro, propôs adotar medidas severas, que foram referendadas pelo então ministro de Justiça e Negócios Interiores, Epitácio Pessoa — responsável maior pelos assuntos de saúde pública. Alguns dias após o anúncio, a primeira página do Jornal do Commercio estampava uma carta aos leitores com críticas às medidas anunciadas, assinada por Jorge Pinto, diretor de Higiene e Assistência Pública do Estado do Rio de Janeiro. Os autores publicam trechos de documentos mostrando que Pinto era contra o longo período de quarentena determinado pelo governo federal. Para o gestor local, a peste seria “facilmente dominável e tratável, em virtude dos avanços científicos da época”. Ele reclamava também da extensão das medidas que incluía portos de outras cidades de Portugal e da Espanha como suspeitos, o que elevaria preços dos produtos importados e causaria prejuízos econômicos. Os autores destacam o argumento de Jorge Pinto (28 ago. 1899, p.1), publicado na primeira página da seção Gazetilha, na coluna Peste Bubônica:

A higiene moderna, solidamente apoiada na bacteriologia, obedece a uma orientação toda experimental e, como ‘ciência econômica’, procura, quando possível, aliar as suas prescrições, as suas medidas, ‘aos interesses das outras forças vivas nacionais – o comércio, a indústria’, o proletariado.

Quarentena, economia e ideologias: 25 dias de disputa na imprensa

Ao longo de 25 dias (24 de agosto a 17 de setembro), trava-se uma disputa sobre como a chegada da peste ao Brasil deve ser combatida, se com medidas restritivas ou de maneira liberal. Os pesquisadores do artigo comentam que Andrade e Pinto, defendiam seus pontos de vista em relação ao tempo de quarentena com argumentos científicos e políticos, misturando também seus posicionamentos ideológicos, questões econômicas e de representação social da doença.

No âmbito federal, a epidemia é tida como uma grande ameaça, que requer medidas drásticas do governo e a saúde pública é priorizada. Já na esfera estadual (separada juridicamente da capital federal naquele momento) a peste é tida como ‘a mais dominável das doenças’, e adota-se uma postura liberal em que o Estado não deve interferir na economia.

Ao longo dos dias, sem que haja consenso entre Andrade e Pinto, que representam a gestão da saúde, o que restam são acusações mútuas. O debate se transforma numa briga pessoal. Utilizando como referencial teórico a noção de campo de Pierre Bourdieu e os estudos sobre controvérsia científica de Bruno Latour, os pesquisadores concluem que os protagonistas do episódio pertenciam mais ao campo político do que ao científico.

Cessam as cartas na imprensa. Mas a doença avança no país e as questões deste debate público ressurgem. “Em diversos momentos, se discutiram quais medidas deveriam ser tomadas, agora não mais para evitar a chegada da peste, mas sim para combatê-la, e quais deveriam ser o papel e os limites da atuação do Estado no enfrentamento dessa epidemia. Além disso, questões científicas voltaram a ser discutidas, como a eficácia do soro antipestoso e também aspectos da representação social, isto é, se a peste é algo terrível ou é ‘doença facilmente dominável’”, escrevem Dilene e Matheus.

Diretor geral de Saúde Pública pede demissão, ministro não aceita

Os autores da pesquisa relatam, ainda, que quando a epidemia chegou à capital federal, Nuno de Andrade colocou seu cargo à disposição do ministro da Justiça, Epitácio Pessoa, por considerar sua incapacidade de evitar a chegada da peste. “A demissão não foi aceita, e ele continuou à testa da Diretoria Geral de Saúde Pública, até março de 1903. Para combater a peste, as medidas tomadas foram o isolamento dos doentes e de seus parentes, e a desinfecção dos locais suspeitos. No tocante aos navios, aqueles saídos do Rio de Janeiro em momentos críticos da epidemia ficaram submetidos a quarentenas. Nesse momento, prevaleceu a força dos interesses econômicos, e o tempo de quarentena foi reduzido a dez dias ( Brasil, 1901 )”. Quer saber mais sobre esta história? Acesse aqui o artigo completo.

Outro olhar: construindo consensos com base no conhecimento científico

Afinal, como se constroem os consensos na ciência? Por que os cientistas e as instituições de pesquisa reveem suas posições? Qual o papel dos dados nesses processos e na tomada de decisões?  Associado ao tema do artigo, o Portal de Periódicos Fiocruz, recomenda um vídeo da série especial Covid-19: o olhar dos historiadores da Fiocruz

Nele, o historiador Robert Wegner, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), discute esta e outras questões relacionadas à pandemia do novo coronavírus. Ele afirma que a ciência funciona como uma imensa rede, o que inclui diversas instituições, que se fortalecem pelo compartilhamento de informações e a formação de consensos em nível internacional. Wegner explica que o conhecimento científico é caracterizado pelo fato de poder ser revisto, submetido à prova e substituído. Assista ao vídeo e entenda.

Fonte: Portal de Periódicos Fiocruz