A história da imunização no Brasil: o presente no passado

Janeiro/2021

Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos

Clique na capa para acessar o conteúdo completo do suplemento de 2003

“Imunização: a palavra não consegue expressar a história plena de controvérsias científicas, reações da sociedade, erradicação de doenças e, mais recentemente, disputa por mercados e maior desenvolvimento.” A frase poderia ter sido dita hoje pela presidente da Fiocruz, Nisia Trindade Lima, mas foi escrita por ela há 17 anos, em 2003, junto com os pesquisadores Nara Azevedo, Carlos Fidelis Ponte e Akira Homma, na Carta do Editor que apresentava o suplemento “Imunização no Brasil – história e perspectivas” da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos (vol. 10, n. 2, 2003).

Agora vejamos o quanto é atual tal colocação. Ontem, domingo, 17 de janeiro de 2021, o Brasil começou por São Paulo a vacinação da sua população contra a Covid-19 – depois de 50 países, apesar de ser o segundo no mundo em mortes pela pandemia. Em 2020, foram mais de 200 mil óbitos – 10% do total mundial de dois milhões, para uma população que representa 2,7% da global.

A pandemia de coronavírus Sars-Cov-2 colocou 2020 na história como o ano em que um vírus paralisou o mundo, trazendo a reboque outros vírus oportunistas: negacionismo da ciência, fake news e políticos inescrupulosos aliados a líderes religiosos propagando tratamentos precoces não comprovados cientificamente, prometendo curas milagrosas e desdenhando o distanciamento social, o uso de máscaras e a vacinação – únicos recursos de eficácia atestada até agora. Onde a negação da ciência foi mais forte, houve mais contaminação e mais mortes.

Com atraso, mas trazendo esperança, uma vacina importada da China chegou ao Brasil em meio a disputas políticas entre o Governo Federal e os estaduais – principalmente o de São Paulo, que ganhou a corrida e aplicou a primeira dose da Coronavac, desenvolvida pelo Instituto Butantan e o laboratório chinês Sinovac, logo após a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) anunciar a aprovação do seu uso emergencial, assim como o da vacina feita em parceria pelo laboratório AstraZeneca, a Universidade de Oxford e a Fiocruz. Os dois imunizantes foram considerados seguros e eficientes e serão produzidos aqui pelo Butantan e a Fiocruz, respectivamente.

A apresentação da Anvisa e o início da vacinação em são Paulo ontem foram avanços importantes da ciência contra o negacionismo, um dos maiores obstáculos para as respostas à pandemia em 2020. Diante disso, o Ministério da Saúde antecipou de quarta-feira (20) para hoje (18), às 17h, o início do Plano Nacional de Imunização.

As vacinas na história em 25 anos de revista

Disputas políticas, comerciais, científicas e tecnológicas, além de grandes desafios de aceitação social, não são novidade na história das vacinas. Desde meados da década de 1990, a revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos enfoca debates sobre o seu desenvolvimento, produção e programas de imunização.

Em 2003, a demanda reprimida sobre o tema era tanta que o periódico da Casa de Oswaldo Cruz lançou um suplemento especial com 20 artigos que cobriam desde meados do século XIX até o início do século XXI. Alguns destes artigos são tão relevantes ainda hoje em dia que optamos por listá-los todos ao final deste texto.

Conforme dito no início, a edição teve como um dos editores convidados a atual presidente da Fiocruz, hoje no início do seu segundo mandato. Na Carta dos Editores Convidados, os pesquisadores explicavam que a tarefa de reconstituir a história da imunização no Brasil – tema tão instigante quanto controverso e multifacetado – era ambiciosa demais para se resolver em apenas um número da revista:

“Esta edição também é uma história inacabada e incompleta. Ao organizá-la, promovemos um encontro de perspectivas: historiadores, antropólogos, sociólogos, médicos, sanitaristas, epidemiologistas, economistas, comunicadores, cientistas da área biomédica, gestores de saúde expõem suas análises, opiniões e vivências.”

De fato, o suplemento temático de 2003 não deu conta da demanda e, em 2004, no volume 11, suplemento 1, o tema voltou à baila nos artigos Vacina antivariólica: visões da Academia de Medicina no Brasil Imperial, de Tania Maria Fernandes, e As ciências sociais entre biólogos e vacinas: agruras do estudo em um laboratório, de Márcia de Oliveira Teixeira.

Bem antes disso, em 1996, a revista HCS-Manguinhos já se ocupava do tema de forma multidisciplinar. Em A produção e o desenvolvimento de vacinas no Brasil (v. 3, n. 1, jun 1996), o economista Carlos Augusto Grabois Gadelha reunia em quase vinte páginas depoimentos de personalidades influentes e de áreas diversas como Akira Homma, Isaías Raw, José Gomes Temporão, Carlos Alberto Moreira e José Eduardo Bandeira de Mello, visando fornecer ao leitor subsídios para refletir sobre o desenvolvimento tecnológico e a produção de imunobiológicos no país e se posicionar sobre os temas. “As questões estão em aberto e requerem liberdade de pensamento face aos dogmas do neoliberalismo e do intervencionismo”, refletia Carlos Gadelha, há 25 anos.

No ano 2000, em Alastrim, varíola é? (v. 7, n. 1, mar/jun 2000), Luiz Antônio Teixeira discutia uma controvérsia científica ocorrida entre 1910 e 1913 entre dois importantes médicos de São Paulo: Antonio Carini, diretor do Instituto Pasteur, e Emílio Ribas, diretor do Serviço Sanitário, em torno da classificação de uma doença que afetava a cidade.

No artigo Saúde pública e as empresas químico-farmacêuticas (v.7 n.3, nov 2000/fev 2001), Maria Alice Rosa Ribeiro aborda o surgimento do sistema de saúde pública e as práticas de combate às doenças infecciosas, desde as desinfecções e produção de substâncias químicas pela indústria, à soroterapia e produção de soros e vacinas nas instituições de pesquisa científica públicas e nas empresas farmacêuticas privadas.

Em abril de 2002, dois artigos de autores renomados são publicados no volume 9, número 1: Erradicação da poliomielite no Brasil: a contribuição da Fundação Oswaldo Cruz, de Hermann G. Schatzmayr, Ana Maria Bispo de Filippis e Fabian Friedrich, e Por uma história renovada da febre amarela e da vacina antiamarílica no Brasil, de Claudio Bertolli Filho.

Em 2007, diante da grande produção em torno do tema, um grupo de cinco pesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz organizou um livro, publicado pela Editora Fiocruz. Inovação em saúde: dilemas e desafios de uma instituição pública teve oito colaboradores que escreveram análises, além de depoimentos de pessoas ligadas à história de Bio-Manguinhos, resultando em mais de quatrocentas páginas. O livro recebeu a resenha Auto-suficiência em vacinas: a história de uma utopia, de Luiz Jacintho da Silva (vol.15, n. 1, mar 2008).

Em 2011, as vacinas voltaram à pauta da revista em dois artigos, um deles ainda atual, dez anos depois: Aspectos socioculturais de vacinação em área indígena, de Luiza Garnelo (vol.18, n.1, mar. 2011). Para os curiosos de uma história um pouco mais distante e apreciadores de charges antigas, o artigo Oswaldo Cruz e a controvérsia da sorologia, de Jorge Augusto Carreta (vol.18, n. 3, set 2011), será leitura aprazível.

Em 2013, Juliana Manzoni Cavalcanti também remonta ao início do século passado com o artigo Rudolf Kraus em busca do “ouro da ciência”: a diversidade tropical e a elaboração de novas terapêuticas, 1913-1923, publicado no Dossiê Brasil-Alemanha (vol. 20, n. 1, mar 2013).

Para quem se interessa pela resistência da população à vacinação, o artigo A epidemia de varíola e o medo da vacina em Goiás, de Eliézer Cardoso de Oliveira (vol. 20, n. 3, set 2013) revelará que, apesar da quase ausência de surtos de varíola, do século XIX até as três primeiras décadas do século XX houve um empenho dos políticos em promover a vacinação antivariólica em Goiás, interpretada como prática civilizatória, embora sua eficácia nem sempre fosse comprovada empiricamente e houvesse resistência popular.

A resistência à vacinação contra varíola reaparece na revista em 2019, no artigo Entre vacinas, doenças e resistências: os impactos de uma epidemia de varíola em Porto Alegre no século XIX, de Fábio Kühn e Jaqueline Hasan Brizola (vol.26, n.2, abr./jun. 2019). Os autores buscaram conhecer o universo da morbidade e estabelecer o impacto social da doença na cidade entre 1846 e 1874.

Outro tema que permanece atual são as concorrências e colaborações científicas entre países. O tema é tratado no artigo De Bombaim ao Rio de Janeiro: circulação de conhecimento e a criação do Laboratório de Manguinhos, 1894-1902 (vol.25, no.3, jul./set. 2018), em que Matheus Alves Duarte da Silva examina uma disputa científica internacional envolvendo vacinas e soros. Por ocasião da defesa de sua tese de doutorado à Ehess, em Paris, recentemente ele concedeu entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos na qual revelou que, há cerca de cem anos, foi a interação entre grupos de cientistas de Brasil, Índia e França – e não os seus esforços isolados – que levou a importantes avanços contra sobre a peste bubônica.

Agora, com a Covid-19, o tema das vacinas voltou à tona, seja na resenha Pode a história imunizar as vacinas? Políticas de vacinação e suas imersões no cenário global, de Rodrigo Ramos Lima e Luiz Alves Araújo Neto, sobre o livro The politics of vaccination: a global history, da Manchester University Press, 2017. (v. 27, supl.1, set. 2020) ou na Carta do Editor intitulada Covid-19 e a corrida pela vacina (v. 27, n. 3, jul./set. 2020), assinada por Marcos Cueto, editor-científico de HCS-Manguinhos e pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.

Conheça também os artigos sobre a temática da vacinação publicados em HCS-Manguinhos em inglês e espanhol.

Acesse o conteúdo integral do suplemento sobre a história da imunização no Brasil de HCS-Manguinhos (v.10, supl.2, 2003) no SciELO:

Carta do editor
Lima, NísiaAzevedo, NaraPonte, Carlos FidelisHomma, Akira

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 Análise

   
 

·  Imunização antivariólica no século XIX no Brasil: inoculação, variolização, vacina e revacinação
Fernandes, Tania Maria

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·  Os primórdios da vacina antivariólica em São Paulo: uma história pouco conhecida
Teixeira, Luiz AntonioAlmeida, Marta de

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·  A hipótese vacinal: por uma abordagem crítica e antropológica de um fenômeno histórico
Moulin, Anne Marie

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·  Overview of an anthropology of the vaccine: a look at the ethics of a humaanitarian practice
Laplante, JulieBruneau, Julie

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·  Produzindo um imunizante: imagens da produção da vacina contra a febre amarela
Lacerda, Aline LopesMello, Maria Teresa Villela Bandeira de

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·  A história da poliomielite no Brasil e seu controle por imunização
Campos, André Luiz Vieira deNascimento, Dilene Raimundo doMaranhão, Eduardo

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·  O Programa Nacional de Imunizações (PNI): origens e desenvolvimento
Temporão, José Gomes

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·  Vacinação, controle de qualidade e produção de vacinas no Brasil a partir de 1960
Ponte, Carlos Fidelis

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·  Novas perspectivas em vacinas virais
Schatzmayr, Hermann G.

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·  Desenvolvimento tecnológico: elo deficiente na inovação tecnológica de vacinas no Brasil
Homma, AkiraMartins, Reinaldo MenezesJessouroum, EllenOliva, Otavio

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·  Inovação em vacinas no Brasil: experiência recente e constrangimentos estruturais
Gadelha, CarlosAzevedo, Nara

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 Imagens

   
 

·  Vacinas e campanhas: as imagens de uma história a ser contada
Pôrto, ÂngelaPonte, Carlos Fidelis

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 Depoimentos

   
 

·  A saúde entre o Estado e a sociedade
Lima, Mozart Abreu

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·  A produção de vacinas é estratégica para o Brasil
Risi Júnior, João Baptista

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·  Saúde pública como missão
Maia, Maria de Lourdes Souza

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·  Comunicação social e vacinação
Rocha, Cristina Maria Vieira da

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·  Eventos adversos pós-vacinais e resposta social
Martins, Reinaldo MenezesMaia, Maria de Lourdes de Souza

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·  A pesquisa em saúde em São Paulo: situação atual e perspectivas de mudança
Carvalheiro, José da Rocha

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·  Inovação tecnológica em saúde na Fundação Oswaldo Cruz
Buss, Paulo Marchiori

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 Fontes

   
 

·  Proposta para um resgate historiográfico: as fontes do SESP/FSESP no estudo das campanhas de imunização no Brasil
Andrade, Márcio Magalhães de

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