O Hospício da Praia Vermelha do Império à República

Março/2023

Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos

Contribuições recentes de pesquisas sobre a história do Hospício Nacional de Alienados estão reunidas no livro O Hospício da Praia Vermelha do Império à República (Rio de Janeiro, 1852-1944), organizado pela socióloga Ana Teresa A. Venancio e o historiador Allister Teixeira Dias e lançado pela Editora Fiocruz e a Editora Unifesp (2022).

A obra é fruto do projeto de pesquisa “Do Hospício de Pedro II ao Hospício Nacional de Alienados: Cem Anos de Histórias (1841-1944)”, desenvolvido entre 2015 e 2018 no Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e financiado pelo Edital do Programa de Excelência em Pesquisa (Proep-Fiocruz-CNPq). 

Conversamos com a professora Ana Teresa A. Venancio para saber mais sobre a obra.

Por que este hospício desperta tanta curiosidade científica?

Ana Teresa A. Venancio

Porque ele é um bom exemplo para pensar, para refletirmos criticamente sobre o tema das instituições psiquiátricas, que é um dos temas centrais da historiografia internacional e nacional. Estas instituições estiveram na base da criação da própria psiquiatria, isto é, na base da construção de um tipo de saber e espaço específico – o psiquiátrico. A psiquiatria, neste sentido, por meio das suas primeiras instituições de “assistência a alienados”, surgia, se inventava, colocando-se o desafio e paradoxo de prestar assistência coletiva e pública à saúde das populações, pondo em desenvolvimento e funcionamento todo um aparato normativo e burocrático, ao mesmo tempo que dedicar-se ao conhecimento e tratamento de uma das dimensões da existência humana das mais complexas e idiossincráticas: a mental.

A curiosidade científica a respeito do Hospício de Pedro II – Hospício Nacional de Alienados, a partir do período republicano – me parece ser decorrente também do fato de ser a primeira instituição especializada de assistência à loucura em nosso país, criada em 1941 e fundada em 1852. Sediada sempre no mesmo espaço de nossa cidade, ali permaneceu por um século, testemunhando e participando da história em distintos períodos e em relação a diferentes processos socioculturais: políticos, sanitários, científicos, urbanos, caritativos etc.

Como destacamos na apresentação do livro, a história do hospício da Praia Vermelha foi assim marcada por características de diferentes contextos históricos:

“Por todo o período do segundo Reinado foi uma instituição ligada a um Estado com fortes interesses escravistas, e assim deve ser entendida” (Venancio e Dias, 2022, p.17). Já no período da Primeira República “os sentidos do HNA, como instituição assistencial e científica foram redefinidos pelo influxo dos ideais de modernidade, civilização e progresso, fazendo-o uma das peças do Estado para a resolução dos problemas nacionais relacionadas a sua população ou povo” (2022, p.18). A era varguista (1930-1945) e sua agenda nacional estadista – com incremento do tecnicismo, fortalecimento e autonomização da burocracia estatal – se fez presente também na “modernização e reestruturação das instituições de assistência à saúde, incluindo-se aí a área psiquiátrica” (2022, p. 18).

Neste contexto o HNA, a atenção e recursos a ele dedicados, teve que enfrentar a implantação de um amplo projeto nacional de assistência psiquiátrica com a criação de inúmeras instituições, ao mesmo tempo em que se complexificavam e reorientavam a rede de atendimento psiquiátrico na capital federal.

Há novas fontes, perguntas e metodologias de pesquisa para além da história?

Sim. O livro traz a análise de novas fontes, como a documentação clínica de pacientes internados no HNA, seja pelo estudo de caso sobre a experiencia da doença, como o capítulo sobre a história de Karina; seja por meio de levantamento massivo de dados em prontuários a respeito de uma história social dos pacientes e das práticas de tratamento utilizadas no HNA , como os testes psicológicos.

A dimensão metodológica também é bastante abordada e traz novidades. Vários capítulos apresentam elementos que ajudam o fazer da pesquisa, ou divulgam produtos originais advindos do uso de metodologias especificas, como ocorre com a última parte do livro, onde encontramos uma cronologia do hospício com sua descrição metodológica. Nesta direção o livro apresenta também a descrição fundamentada do trabalho de organização e implantação de um modelo para gestão e acesso a informação do acervo arquivístico do HNA. Outros capítulos discutem fontes primárias e secundárias para a história da psiquiatria e do HNA, como o texto sobre a construção dos “documentos clínicos” dessa instituição, dissecando elementos fulcrais da produção da informação médica à época.

Do ponto de vista da historiografia, são também novas as perguntas que o livro se propõe a responder. Pergunta-se quem eram os afrodescendentes internados no hospício do ponto de vista de sua própria origem e que histórias sobre a escravidão essas identidades revelam. Pergunta-se como, em 1930, a imagem pública do hospício e a aposentadoria de seu diretor, Juliano Moreira, foi significada pela imprensa e o que este evento histórico nos diz sobre os rumos da instituição. Pergunta-se sobre os processos pelos quais o HNA foi espaço tanto de institucionalização da ciência psiquiátrica (em suas relações por exemplo com a neurologia, a criminologia ou a psicologia) por meio das pesquisas e terapêuticas ali empregadas; e quanto espaço de efetivação de políticas de assistência à saúde, observadas por meio de medidas sanitárias e de normativas sobre a finalidade e funcionamento de algumas das seções da instituição.

A quem este livro pode interessar especialmente, e por quê?

Este livro pode interessar ao público especializado na área das ciências sociais e humanas –história (das ciências, da saúde, cultural, intelectual, urbana, das ideias etc), antropologia, sociologia, arquivologia. Cabe destacar aqui o diálogo, presente no livro, entre essas disciplinas e seus investimentos analíticos e metodológicos, que expressam uma retroalimentação positiva entre as áreas, como por exemplo a história e a arquivologia, no que se refere à apresentação dos resultados de preservação do patrimônio documental da saúde em questão, isto é, o acervo arquivístico documental do antigo hospício. Também pode interessar aos especialistas das ciências sociais em saúde, favorecendo a conexão com a perspectiva histórica, enquanto elemento positivo e incontornável para podermos atuar no presente: precisamos lidar com o passado porque ele nos deixa um legado; e ao mesmo este legado nos coloca desafios para que possamos enfrentar o tempo presente.

Também os jovens em formação universitária nas áreas acima citadas em muito podem se favorecer da leitura do livro, ao encontrarem ali a apresentação de objetos e resultados de pesquisa consistentes, muitos deles frutos de dissertações e teses de doutorado de outros jovens. Os jovens pesquisadores poderão reconhecer ali exemplos e estímulos de como podem vir a expor suas ideias a partir de seus trabalho de pesquisa relevantes.

Por último, mas não menos importante, o livro destina-se a todos os que tem interesse e curiosidade no tema da loucura e das formas pelas quais a nossa sociedade lidou com ela no passado, de modo bastante hegemônico: internando, excluindo, aprisionando, tendo em vista sua cura e também sua invisibilidade e esquecimento. Em capítulos que também podem ser lidos fora da sequência apresentada, o leitor encontrará análises de alguns dos eventos que fazem a história dessa instituição, a qual serviu a diferentes finalidades. O modo como a tuberculose foi tratada dentro desta instituição psiquiátrica; as técnicas psicológicas usadas no hospício republicano. o tratamento dispensado a grupos sociais distintos, como mulheres e negros, os principais enquadramentos psicopatológicos e debates especializados pela medicina mental no final do período imperial; como e quem conseguia se internar no Hospício no Império e na República os vários elementos institucionais que configuraram a reinvenção republicana do HNA e a influência dos acontecimentos de 1930 para as mudanças na instituição.

O que ainda pode ser elucidado por novas pesquisas?

Vou citar alguns dos muitos eventos e perguntas que ainda podem ser exploradas para pesquisas em relação a história do Hospício Nacional de Alienados. Estudos sobre a correlação entre assistência à saúde (mental) e marcadores sociais da diferença como gênero e raça merecem avançar na direção da caracterização e produção de dados, inclusive quantitativos, que respondam quais os grupos mais vulneráveis para os quais a internação psiquiátrica – entre a cura, a morte e a exclusão – foi prevalente. O uso das terapêuticas – a adesão aos avanços científicos e as medidas coercitivas para ajustar o “mental” – também merecem maiores investigações para aprofundarmos as discussões sobre os tipos de cuidados a serem dispensados aos estados e transtornos psicopatológicos, considerando-se certamente o próprio sentido concedido ao que seja psicopatológico. Com relação a gestão institucional e sua correlação com a ciência, cabe investir na analise das gestões posteriores a de Juliano Moreira, encerrada em 1930, e nos rumos científicos que o HNA adotou.

A história do hospício depois de 1944 também é ou será foco de pesquisas?

Este livro é o resultado de um amplo projeto de investigação, que foi financiado pelo Edital do Programa de Excelência em Pesquisa (PROEP) da Casa de Oswaldo Cruz e do Conselho Nacional de Desenvolvimento cientifico e Tecnológico (CNPq), coordenado pela pesquisadora Cristiana Facchinetti (Depes/COC/Fiocruz). Não há previsão de um novo projeto desta amplitude para análise dos últimos anos de existência do hospício, já que em 1944 ele não existe mais na estrutura administrativa da assistência psiquiátrica na capital federal. Seus pacientes são transferidos e distribuídos entre diferentes instituições psiquiátricas públicas então existentes na cidade do Rio de Janeiro: a Colônia Juliano Moreira (Jacarepaguá) e o Centro Psiquiátrico Nacional, formado por várias unidades hospitalares e localizado no Engenho de Dentro. Certamente outras pesquisas nesta direção são muito bem vindas!

Saiba mais sobre cada capítulo e adquira o livro:

O Hospício da Praia Vermelha do Império à República (Rio de Janeiro, 1852-1944), Organizadores: Ana Teresa A. Venancio e o historiador Allister Teixeira Dias. Editora Fiocruz e a Editora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) (2022).

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