Dezembro/2013
Marina Lemle | Blog de HCSM
Na década de 1920, a genética mendeliana era argumento tanto para eugenistas que consideravam a miscigenação racial maléfica para a população brasileira quanto para intelectuais que defendiam a mestiçagem.
Nos anos 1940, em São Paulo, um programa de desenvolvimento de genética de populações atraiu cientistas de diferentes regiões do Brasil, que na década seguinte montaram laboratórios e programas em seus próprios estados, com recursos do governo brasileiro e da Fundação Rockfeller. Dos estudos sobre a mosca da fruta (drosófila), estes pesquisadores estenderam-se ao estudo de outras espécies, incluindo populações humanas.
Para o grupo gaúcho, miscigenação e a formação da população brasileira sempre foram questões centrais. Destacam-se estudos sobre populações indígenas e mestiças, abordando diversidade biológica, fluxo gênico em migrações e características micro-evolutivas de grupos “isolados”.
Nos anos 1990, novas técnicas e a biologia molecular levaram a grandes projetos internacionais, como o mapeamento do genoma humano e pesquisas em células tronco, transgênicos e clonagem. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul incorporou estas novas tecnologias e continuou fazendo história. Tanta história que em 2011 foi inaugurado o Museu da Genética da UFGRS.
O Museu e sua razão de ser são tema de artigo publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos (vol. 20, n. 2, abril/junho 2013).
Conversamos com um dos autores – Vanderlei de Souza, professor da Universidade Estadual do Centro-Oeste, no Paraná -, sobre a relevância histórica do desenvolvimento da pesquisa em genética no Brasil e o papel do Museu da Genética da UFGRS de preservação da memória e de divulgação científica.
O artigo conta que a genética mendeliana foi usada por eugenistas brasileiros na década de 1920. Como? Houve reação?
No Brasil, o uso da genética mendeliana pelos eugenistas tem particularidades muito interessantes para a história das ciências. Enquanto na Europa e nos Estados Unidos a eugenia mendeliana foi empregada de maneira mais homogênea, acionada para legitimar medidas eugênicas radicais e estimular políticas de segregação racial, no Brasil os eugenistas aplicaram a genética mendeliana de maneira mais diversificada.
Em primeiro lugar, a eugenia mendeliana não foi rapidamente incorporada ao ideário científico brasileiro como foi em outros países, na medida em que a genética neolamarckista continuou sendo amplamente empregada por uma grande parcela de cientistas. Durante o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia de 1929, por exemplo, houve um amplo embate entre os defensores da eugenia mendeliana e os neolamarckistas. Para os primeiros, a herança genética era algo imutável, uma vez que estava contida na célula germinal; já para os neolamarckistas, a herança genética poderia sofrer alterações em contato com o meio, seguindo os pressupostos da teoria evolutiva da herança dos caracteres adquiridos.
Em segundo lugar, a genética mendeliana foi empregada no Brasil tanto para reafirmar o suposto malefício que a miscigenação racial apresentava no processo de formação eugênica da população brasileira, como argumentava o eugenista Renato Kehl, quanto para negar a ideia de que os mestiços seriam “tipos inferiores e degenerados”. Como um dos principais adeptos do evolucionismo mendeliano, o médico e antropólogo Edgard Roquette-Pinto fazia uso das leis de Mendel justamente para demonstrar a viabilidade biológica da população mestiça brasileira, refutando o racismo científico e as medidas eugênicas mais radicais, como as leis de esterilização eugênica e de segregação racial.
Como a genética evolutiva influenciou a área no Brasil na década de 40?
Os estudos em genética no Brasil emergem ainda nos anos 1910, centradas em pesquisas sobre genética vegetal e animal em institutos agronômicos como a Escola Agrícola Luiz de Queiroz e o Instituto Agronômico de Campinas. Contudo, a institucionalização mais efetiva das pesquisas em genética ocorreu a partir dos anos 1940, especialmente na Universidade de São Paulo, onde um grupo de geneticista passou a se destacar sob a liderança de André Dreyfus. Com a criação de cooperações internacionais envolvendo agências como a Fundação Rockfeller, o ensino e a pesquisa no campo da genética cresceram rapidamente no país. A vinda ao Brasil do geneticista russo Theodosius Dobzhansky, conforme acordo feito entre a Universidade de São Paulo e a Fundação Rockfeller, foi decisivo para a formação de um programa brasileiro de desenvolvimento da genética de populações, que tinha por objetivo treinar um grupo de cientistas nas novas técnicas da biologia evolutiva. Esse programa atraiu cientistas de diferentes regiões do Brasil, que se dirigiam até São Paulo para realizar atividades de ensino e pesquisa nesse campo da genética.
Os estudos de genética de populações no Brasil começaram nos anos 50. Como se deu esse início?
Esse grupo de geneticistas treinados na Universidade de São Paulo por Dobzhansky e André Dreufus criaram, a partir dos anos 1950, importantes grupos de pesquisas e laboratórios em genética de populações em diferentes regiões do país. Além das pesquisas que vinham sendo desenvolvidas na Universidade de São Paulo, formaram-se grupos de pesquisadores em Porto Alegre, Rio de Janeiro, Curitiba, Belo Horizonte e Salvador, boa parte deles financiados com recursos vindos tanto do governo brasileiro quanto da Fundação Rockfeller. Embora esses grupos tenham começado a partir da criação de pequenos laboratórios e sem muita estrutura para pesquisas, nas décadas seguintes ampliaram suas atividades com bastante sucesso, especialmente com a implantação dos primeiros programas de pós-graduação nessa área. Esses diferentes grupos de pesquisas que se espalhavam pelas universidades brasileiras se destacaram a partir dos anos 1950 pela criação de uma bem estruturada rede internacional de cooperação envolvendo sobretudo o Brasil e os Estados Unidos, o que possibilitou não só a realização de estudos no exterior como a execução de uma série de pesquisas e a publicação em revistas renomadas dos Estados Unidos e da Europa. Boa parte dessas pesquisas sobre genética de populações começou com estudos sobre as drosófilas, mosca da fruta que foi amplamente empregada nos estudos sobre genética, estendendo-se posteriormente para o estudo de outras espécies animais e vegetais, ou mesmo para o estudo de populações humanas.
Populações de nordestinos, negros, mestiços e indígenas foram o foco de estudos genéticos nos anos 1960. Francisco Salzano, por exemplo, debruçou-se sobre os efeitos da miscigenação. Poderia falar sobre estes estudos?
A análise sobre os estudos genéticos de “mistura racial” produzidos entre os anos 1950 e 1970 é justamente o tema que estamos pesquisando no momento, em um projeto financiado pelo CNPq sob a coordenação do Prof. Ricardo Ventura Santos, antropólogo da Ensp/Fiocruz e do Museu Nacional/UFRJ. Conforme nossas pesquisas vêm demonstrando, ainda nos anos 1950 um grupo de geneticistas investiu suas atenções no estudo da genética de populações humanas, com enfoque especial para o estudo dos efeitos da miscigenação racial em populações de diferentes regiões do país. Além do grupo formado por Francisco Salzano na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), destacaram-se também nessas pesquisas nomes como Newton Freire-Maia, Pedro Henrique Saldanha, Henrique Krieger, Eliane Azevedo, entre outros, que publicaram teses, livros e uma série de artigos em revistas científicas nacionais e internacionais. Em menor ou maior grau, esses pesquisadores estavam interessados em investigar, através das teorias e métodos da genética, como ocorreu o processo de formação da população brasileira, de modo que a questão da miscigenação sempre foi um ponto central.
Dentre os estudos de Salzano, destacam-se aqueles sobre as populações indígenas, tanto do sul do Brasil quanto no Brasil Central e na região amazônica, onde realizou pesquisas sobre os Xavante e Yanomami em parceria com o geneticista norte americano James Neel. O objetivo desses estudos eram compreender os processos envolvidos na produção da diversidade biológica, o fluxo gênico decorrente de migrações, as características micro-evolutivas dos chamados grupos “isolados”, dentre outros temas. Além de procurar compreender o próprio processo evolutivo, o interesse desses geneticistas era analisar aspectos demográficos ligados especialmente aos índices de natalidade e mortalidade, a ocorrência e o comportamento de determinadas doenças ou epidemias e as relações entre aspectos genéticos, sociais e ambientais.
Como foi o período da ditadura militar para a genética brasileira?
Parece-me que o principal problema enfrentado pelos geneticistas foi o mesmo que passaram muitos outros cientistas e professores das universidades brasileiras daquele período, ou seja, problemas de perseguição política e perda de autonomia universitária. Em alguns casos, os pesquisadores também tinham maiores dificuldades para realizar viagens ao exterior a fim participarem de eventos científicos ou realizar estágios de formação, uma vez que, em alguns casos, a autorização de viagem era expedida diretamente pelos militares. Do ponto de vista do financiamento para pesquisa e ensino, os recursos do governo militar continuaram sendo liberados regularmente, possibilitando a expansão dos programas de pesquisas e de cursos de pós-graduação, apoiados pelo CNPq e pela Capes, agências criadas nos anos 1950 para estimular a pesquisa e o ensino superior no Brasil.
Durante os anos 1990, os pesquisadores da UFRGS mudaram de campus e, bem equipados, ampliaram suas linhas de pesquisa. Poderia destacar algumas?
Nos anos 1990, o desenvolvimento da genética é marcado no mundo todo pela introdução de novas técnicas e pela expansão da biologia molecular, que possibilitou a formação de vários projetos importantes, como o projeto genoma humano, as pesquisas sobre as células tronco, estudos sobre transgênicos e implantação de programas de clonagem de animais. De maneira geral, a UFRGS incorporou essas novas tecnologias científicas ao seu departamento de genética, especialmente depois da criação do Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular, em 1991. Na década de 2000, a UFRGS inicia projetos importantes como o projeto Genosoja [Consórcio Nacional para Estudos do Genoma da Soja], do qual participam instituições de diversos estados brasileiros, e o projeto Biotecsur [Biotecnología en el Mercosur], que envolve países do Mercosul, e que foi fundamental para a modernização de laboratórios e o desenvolvimento de pesquisas integradas.
Em 2011, foi inaugurado o Museu da Genética da UFRGS, com a proposta de promover a divulgação científica. Qual a importância do Museu? Ele tem alcançado os objetivos?
A criação do Museu da Genética é importante não apenas pela preservação da memória da pesquisa científica brasileira, mas também para refletir, a partir de uma perspectiva da história das ciências, sobre o desenvolvimento e institucionalização da pesquisa em genética no Brasil, sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial. Os objetos materiais, as imagens fotográficas e os textos disponíveis para leitura no Museu permitem uma ampla compreensão sobre aspectos históricos ainda pouco estudados na história das ciências no Brasil, como as dinâmicas locais, nacionais e transnacionais envolvendo a genética brasileira. Criado com o objetivo de colaborar com a divulgação e o ensino de ciências, o Museu da Genética, sem dúvida, tem obtido sucesso, basta ver a circulação de visitantes, especialmente de estudantes.
Leia na revista HCS-Manguinhos:
História da genética no Brasil: um olhar a partir do Museu da Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – artigo de Vanderlei Sebastião de Souza, Rodrigo Ciconet Dornelles, Carlos E.A. Coimbra Júnior e Ricardo Ventura Santos.
Leia no Blog de HCS-Manguinhos:
O Brasil mestiço e viável de Roquette-Pinto
Anpuh premia tese de Vanderlei Sebastião de Souza sobre o “retrato racial” do brasileiro feito por Edgard Roquette-Pinto.
Como citar este post [ISO 690/2010]: