Pandemia na África do Sul

Em 27 de maio, no congresso virtual da UFBA 2020, foi realizada a mesa internacional Pandemia na África – epidemiologia e algocracia, com a participação de Livio Sansone, Jamile Borges da Silva, Valdemir Donizete Zamparoni, Colin Major Darch, Cardoso Armando, Lamine Badji, Paulo Veríssimo e Teresa Cruz e Silva. Hoje publicamos texto de Colin Darch, da Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul, escrito na semana seguinte à do evento, especialmente para o Blog de HCS-Manguinhos.


Colin Darch *

Colin Darch

Hoje, 3 de junho, na África do Sul, é dia 69 de um confinamento de cinco fases, que foi reduzido à terceira desde o início do mês. As estatísticas mais correntes mostram que 35.812 pessoas  contraíram a covid-19, das quais 18.313 se recuperaram e 755 morreram. O aumento quotidiano de número de casos ontem foi de 1.455. O Cabo Ocidental, a província onde moro, é um foco de crise, responsável por dois terços de todos os casos registrados no país. No entanto, os testes – sem falar de rastreamento – ainda são bastante insuficientes, com um total de cerca de 760 mil realizados, e com uma acumulação de 100 mil resultados ainda não entregues.

Este é o terceiro relato que comunico aos brasileiros sobre o progresso da pandemia na África do Sul. No início de abril, gravei um breve relatório para uma estação de rádio em Pernambuco e, em 27 de maio, contribuí um modesto comentário gravado à mesa redonda sobre Pandemia na África: epidemiologia e algocracia do Congresso Virtual UFBA 2020. Ambos eram mais descritivos do que analíticos: relatavam as medidas tomadas pelo nosso governo e seu impacto pessoal e familiar, mencionando apenas de passagem os efeitos na sociedade em geral. No entanto, agora gostaria de abrir duas questões mais amplas, que são de certa forma inter-relacionadas, e que podem até ressoar, para os leitores no Brasil, com a sua história de escravidão e discriminação racial, semelhante em muitos aspectos à nossa.

Primeiro, o que significa socialmente enquadrar a pandemia principalmente em termos de etiologia da doença, a natureza do vírus dentro da “teoria germinativa” dominante da chamada “medicina ocidental”, quando as medidas de mitigação são necessariamente de um caráter predominantemente social?

Segundo, quais as implicações – no contexto de uma África do Sul pós-apartheid – do uso de categorias que agrupam indivíduos em classes de “alto risco” ou de “baixo risco” de acordo somente com a raça, ou a idade, ou o gênero? Qual, efetivamente, tomando em conta a longa história e as complexidades entrelaçadas de raça e classe na África do Sul, seria a diferença entre quarentena e segregação (uma interrogação posta e bem a propósito pelo jornalista Mark Gevisser)? Afinal de contas, o apartheid, como sistema de separação espacial, teve suas próprias origens numa prática epidemiológica: um surto de peste bubônica na Cidade do Cabo em 1901 levou à expulsão em massa de todos os residentes africanos, que foram impedidos de regressar após o término da epidemia e obrigados a se estabeleceram nos chamados “locais” longe dos bairros onde os brancos viviam. O próximo passo lógico era tornar esses arranjos permanentes para a classe trabalhadora negra – e assim nasceu o apartheid.

Mas para voltar à atualidade, o nosso governo sul-africano liderado pelo presidente Cyril Ramaphosa, juntamente com o ministro da Saúde Zweli Mkhize e o assessor médico Salim Abdool Karim, agiu decisivamente e com rapidez ao declarar um “estado de desastre” em 15 de março; a primeira morte relacionada a covid-19 aconteceu no dia 27 de março. O confinamento imposto em 26 de março foi rigoroso e abrangente: as pessoas só podiam sair da casa para comprar comida ou medicamentos, nenhum exercício fora da casa era permitido, a venda de álcool e cigarros era proibida, os serviços religiosos eram restritos e a participação em cerimônias fúnebres era também estritamente limitada. O presidente e o ministro apareceram múltiplas vezes na televisão e falaram com franqueza: o ministro Nkosazana Dlamini-Zuma usava o isiZulu, idioma mais falado no país, numa das suas conferências de imprensa diárias nos meados de abril. Em maio, algumas restrições foram flexibilizadas e, no início do mês de junho, flexibilizadas ainda mais. A venda de álcool agora é permitida, algumas escolas reiniciarem as aulas, e alguma atividade de igreja e mesquita foi permitida.

Para a classe média, essas restrições eram um aborrecimento, mas não catastróficas: eu pessoalmente consegui comprar alimentos online, incluindo frutas e legumes frescos, entregues ao meu portão, bem como determinados medicamentos necessários. Os nossos supermercados implementaram protocolos de higienização, com os funcionários e cobradores usando máscaras e luvas, e limites impostos ao número de clientes admitidos a qualquer momento. Eu vivo, como a maioria dos sul-africanos de classe média (predominantemente brancos), numa casa grande, com amplo espaço e um jardim, e assim o distanciamento também não foi, para nós, uma coisa difícil. Mas a maioria dos sul-africanos – o país temos que lembrar com o pior índice de desigualdade no mundo – vive em “townships”, ou seja, favelas, densamente povoadas, nas quais o distanciamento é extremamente difícil, se não for impossível.

Sem dúvida, esse confinamento exacerbou tensões pré-existentes na sociedade sul-africana, e uma série de debates ou “bate-bocas” (dependendo da perspetiva política) eclodiram. Uma, relativamente pouco notada, tem sido a marginalização efetiva dos curandeiros nas comunidades africanas, cujos números estão estimados a até 200 mil praticantes, prestando serviços de saúde primária para pelo menos 60% da nossa população. É um fato extraordinário que a antiga, racista e colonial “Lei de Supressão da Feitiçaria” de 1957 ainda esteja em vigor na África do Sul, apesar de ter sido julgada inconstitucional. Apesar da opinião amplamente compartilhada de que os “médicos ocidentais” e os curandeiros funcionam dentro de sistemas epistemológicos absolutamente incompatíveis, na verdade há uma hibridização constante.

A historiadora brasileira Jacimara Souza Santana cita, num livro recente, o caso de um curandeiro em Moçambique (nosso país vizinho), no sentido de que “os europeus andam a enganar-nos … eu não trato só da saúde mas também das dificuldades de cada um, e os doutores europeus não sabem destes remédios.” Numa situação como o atual, no qual a etiologia da doença é mal-entendida, a capacidade de lidar com as “dificuldades de cada um” é certamente algo a ser procurado e mobilizado ao máximo.

Houve um notável crescimento de estigmatização associada à covid-19, decorrente do medo generalizado e incentivado por boatos e desinformação. A visão de ambulâncias ou carros de polícia estacionados fora de uma habitação e capaz de provocar pânico entre os vizinhos, e houve casos de estrangeiros ou pessoas de etnias ou raças diferentes sendo responsabilizados pela propagação de infecções. Na província de KwaZulu-Natal, em abril, uma multidão enfurecida protestou e queimou pneus fora do Hospital Untunjambili. As estatísticas oficiais não se encontram desagregadas por categorias raciais ou étnicas, e nos finais de maio, o ministro Mkhize defendeu que não havia necessidade de tais dados, uma vez que as condições sociais eram mais importantes na identificação de padrões de infecção. É, no entanto, uma questão altamente controversa, como aprendemos na nossa experiência com HIV/Aids: por um lado, esses números potencialmente aumentariam os níveis de estigma e alimentariam tensões étnicas; por outro, a ausência de dados aparece como falta de transparência ou uma tentativa de ocultar uma realidade desconfortável.

Outra questão controversa é a projeção do governo para o curso futuro provável da pandemia, com uma previsão de 40 mil mortes até o final do ano. Isso causou alarme, e um grupo de pesquisa independente chamado “Pandemic Data Analysis” (ou Panda) argumentou à força que esse resultado colocaria a África do Sul entre os países mais afetados do mundo. Panda defendeu que a análise governamental não tomou em conta o fato demográfico de que a nossa população é muito mais jovem do que a da maioria dos países europeus, e a mortalidade associada à covid-19 está profundamente relacionada à idade do doente.

Enquanto isso, há alguns dias, uma decisão do Supremo determinou que os regulamentos oficiais de confinamento eram inválidas por terem sido reprovados no teste de “racionalidade”. No entanto, um dos nossos grandes comentaristas, Pierre de Vos, destacou que, embora o juiz tenha acertado ao decidir que alguns regulamentos são irracionais, a conclusão de que assim todos também são inválidos está errada. Isso porque, segundo ele, o tribunal “não pode declarar um regulamento inválido sem tomar em consideração cada regulamento específico, e sem testar se cada regulamento individual seja irracional, ou, injustificadamente viola um ou mais direitos constitucionalmente protegidos.” A questão sem dúvida irá para o tribunal de recurso.

A crise provocada pela covid-19 na África do Sul é ao mesmo tempo complexa e imprevisível, e essas minhas breves observações não pretendem fazer mais do que apontar para algumas das mais significativas batalhas que estão sendo atualmente travadas médica, politica e juridicamente, num momento no qual todos nos estamos andando para a frente cheios de incertezas, ignorâncias e ansiedades.

* Colin Darch é pesquisador honorário associado na Unidade de Governança e Direitos Democráticos da Universidade da Cidade do Cabo

Como citar este post:

DARCH, Colin. Pandemia na África do Sul. Blog de HCS-Manguinhos. Publicado em 17 de junho, 2020. Acesso em 17 de junho, 2020. Disponível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/pandemia-na-africa-do-sul

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