Junho/2013
Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos
No início do século XX, enquanto muitos atribuíam o atraso econômico e social do Brasil à miscigenação racial e defendiam a regeneração da população brasileira com novos imigrantes brancos europeus, Edgard Roquette-Pinto remava na contramão, negando a suposta inferioridade do povo brasileiro e valorizando sua biologia mestiça. Para ele, o progresso dependia de educação, ciência e cuidados com a saúde pública.
O “retrato racial” do Brasil feito por Roquette-Pinto e sua defesa da viabilidade do país enquanto nação mestiça são o foco da tese de doutorado de Vanderlei Sebastião de Souza, que venceu o Terceiro Prêmio de Teses da Associação Nacional de História (Anpuh) Brasil/2012, referente às teses defendidas nos anos de 2010 e 2011. O prêmio será entregue em 22 de julho, em Natal, na abertura do XXVII Simpósio Nacional de História. A tese será publicada em livro pelas editoras da FGV e da UFRN, com o apoio da Anpuh.
Professor de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste, no Paraná, Vanderlei Sebastião de Souza é egresso do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, onde teve como orientador o professor Robert Wegner. Nesta entrevista ao blog da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, ele explica a importância da antropologia de Roquette-Pinto frente ao racismo que se propunha científico.
A sua tese de doutorado trata dos estudos antropológicos que Edgard Roquette-Pinto desenvolveu durante o período em que atuou no Museu Nacional, sendo seu principal objetivo fazer um amplo retrato sobre os “tipos antropológicos” do brasileiro. Você poderia falar um pouco sobre esse “retrato racial” do Brasil produzido por Roquette-Pinto?
Essa busca por conhecer o Brasil e descrever as características de sua população foi, sem dúvida, o que sempre mobilizou os estudos antropológicos de Roquette-Pinto. No início do século XX, pensar a realidade brasileira, e sobre ela produzir interpretações, diagnósticos e projetos de reforma social, é o que dava sentido para a produção intelectual da grande maioria dos pensadores brasileiros. Neste contexto, a questão racial aparecia como um dos aspectos principais para projetar a construção da nação e da identidade nacional, temas que tanto inquietavam os brasileiros daquele período. Para Roquette-Pinto, essa busca pelo Brasil implicava, antes de tudo, na elaboração de um retrato antropológico capaz de revelar as características físicas, psicológicas e sociais da população brasileira. Entre o final da década de 1910 e o início de 1930, esse antropólogo formou uma equipe de pesquisadores no Museu Nacional para auxiliar nesses estudos, cujos resultados negavam as teorias raciais que condenavam a população brasileira por sua origem mestiça, indígena e africana.
Argumento em minha tese que esse “retrato” do Brasil produzido por Roquette-Pinto foi empregado justamente para demonstrar que, do ponto de vista de sua formação antropológica, a miscigenação racial não gerava uma população “inferior” ou “degenerada” como muitos afirmavam desde o século XIX. Para Roquette-Pinto, os “problemas nacionais” não estavam relacionados à raça ou à miscigenação racial, mas às questões de ordem política e social. Como procuro demonstrar ao longo da tese, Roquette-Pinto utilizou-se da antropologia física, e desse retrato racial do Brasil, como ferramenta política por meio da qual defendia um projeto de reforma do país baseado na educação, na ciência e nos cuidados com a saúde pública. Embora os seus estudos apresentassem alguns paradoxos, como a crença na desigualdade dos atributos psicológicos dos diferentes “tipos antropológicos”, seu argumento consistia em destacar a viabilidade do Brasil enquanto nação mestiça.
Para o sociólogo Gilberto Freyre, Roquette-Pinto foi um “mestre ilustre” da antropologia no Brasil, tendo contribuído para que concebesse a miscigenação racial em termos positivos. Afinal, em que aspectos essa antropologia se diferenciava das concepções raciais formuladas naquele período?
Quando iniciei a pesquisa de doutorado, uma das coisas que mais me mobilizava era compreender como Roquette-Pinto construiu um modelo de antropologia anti-racista a partir de campos das ciências, como a antropologia física e a eugenia, que haviam se originado justamente do debate sobre teorias raciais fortemente deterministas. No início do século XX, como a historiografia tem apontado com bastante frequência, era comum entre os cientistas ligados às ciências naturais a afirmação de que a humanidade se dividia entre “raças inferiores” e “superiores”, e que a miscigenação racial era a principal responsável pela degeneração física e mental dos indivíduos.
Mesmo no Brasil, país com imensa população de negros, indígenas e mestiços, havia bom número de intelectuais, cientistas, educadores e ativistas políticas que julgavam ser a miscigenação racial o grande responsável pelo “atraso” econômico, social e civilizacional do país. Para estes, o desafio brasileiro seria substituir a população mestiça por novos imigrantes brancos vindos da Europa, o que levaria ao branqueamento, à regeneração da população e, em conseqüência, ao progresso do país. Em minha dissertação de mestrado, pesquisei justamente um desses intelectuais, o médico e eugenista Renato Kehl, cujas concepções científicas e projetos de reforma social baseavam-se em teorias oriundas do racismo científico.
Acontece que, ainda no início de século XX, outros cientistas já vinham contestando muitas das teorias raciais, como é o caso de um grupo de antropólogos alemães formados numa tradição científica mais humanista e progressista. Foi dessa escola antropológica que saiu, por exemplo, Franz Boas, alemão que produziu uma das críticas mais fortes ao racismo científico. No Brasil, outros intelectuais também refutavam argumentos fatalistas relacionadas à formação racial brasileira, como é possível perceber na obra de Alberto Torres e Manoel Bomfim, ou mesmo de Euclides da Cunha, que via no mestiço sertanejo o elemento principal da nacionalidade brasileira. O mesmo pode ser dito da geração de médicos e sanitaristas que, a partir dos anos 1910, passaram a identificar as doenças, a falta saneamento e o abandono em que vivia a população do interior como os principais responsáveis pelos “problemas brasileiros”, retirando a centralidade que se atribuía à questão racial.
Procuro demonstrar em minha tese de doutorado que a antropologia de Roquette-Pinto foi o resultado tanto de um diálogo com essa geração de intelectuais brasileiros, quanto com esse modelo de antropologia mais humanista e liberal que havia surgido na Europa na passagem do século XIX para o XX. Aliás, um dos argumentos defendidos na tese é que a obra e os projetos políticos de Roquette-Pinto tornam-se mais inteligíveis quando analisamos o debate internacional sobre ciência, raça e nação no qual o antropólogo brasileiro esteva envolvido.
Como os estudosde Roquette-Pinto foram recebidos numa época em que as ideias eugênicas ganhavam terreno, sobretudo nos anos 1930?
Para mim, o exemplo mais emblemático para explicar a forma como a antropologia de Roquette-Pinto foi recebida nas primeiras décadas do século XX é a referência que Gilberto Freyre faz ao antropólogo no prefácio de Casa-Grande & Senzala, livro publicado em 1933. Além de lembrar a importância que Franz Boas teve em sua maneira diferenciar raça de cultura, Gilberto Freyre confessa que a antropologia de Roquette-Pinto foi fundamental para mudar sua percepção sobre o significado da miscigenação racial na formação do Brasil, tema que tanto o inquietara do em sua juventude. Nessa referência, Freyre destaca a posição de Roquette-Pinto durante o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, realizado em 1929, quando se opôs aos “arianistas” presentes no evento, afirmando que o “problema do Brasil” não era a miscigenação, mas sim as doenças e à falta de instrução a que estavam submetidos os mestiços.
No que dizia respeito à eugenia, Roquette-Pinto foi um crítico das concepções mais radicais, como aquelas divulgadas por Renato Kehl e um grupo de intelectuais que defendiam medidas mais duras como a esterilização eugênica, o controle matrimonial, a seleção de imigrantes e a segregação racial. Embora o próprio Roquette-Pinto também compartilhasse da crença de que era possível empregar a ciência para aperfeiçoar as características biológicas humanas, entendia que a miscigenação racial não gerava indivíduos “inferiores” ou “inaptos”, conforme os termos empregados na época.
Neste sentido, penso que o modelo de antropologia defendido por Roquette-Pinto possibilitou uma reflexão mais profunda sobre as teorias raciais propagadas no Brasil desde o final do século XIX. Não há dúvida que seus argumentos acabaram influenciando interpretações sobre o Brasil e os debates sobre eugenia, imigração e formação da população brasileira. No início dos anos 1930, a defesa que o antropólogo fazia da identidade mestiça brasileira viria a ganhar ainda mais consistência com a emergência da sociologia de Gilberto Freyre e Arthur Ramos. Juntos, estes autores produziram forte impacto no pensamento brasileiro, freando em alguma medida o entusiasmo racista que se disseminava por setores da sociedade brasileira. Vale lembrar que ainda no início dos anos 1930, sob a liderança de Freyre, Roquette-Pinto e Arthur Ramos, um grupo de intelectuais lançaria o chamado “Manifesto dos intelectuais brasileiros contra o preconceito racial”, reafirmando que o racismo científico inspirador da eugenia, por exemplo, não apresentavafundamentação antropológica.
Como o seu trabalho, agora premiado, pode contribuir para as discussões mais contemporâneas sobre raça e relações raciais no Brasil, levando em consideração o debate sobre cotas raciais e outras políticas?
É difícil dizer como as pessoas vão ler minha tese e associar a esse debate mais contemporâneo. Sem dúvida, o que me levou a estudar a questão racial no Brasil no início do século XX, tema com o qual me ocupo desde o mestrado, foi a minha inquietação com a persistência dessa temática no presente. No que diz respeito mais especificamente às discussões sobre as cotas raciais, penso que a tese poderá contribuir para reafirmar o quanto é perigoso esse debate sobre a classificação e divisão da sociedade pelo critério racial. Esse processo de racialização da sociedade brasileira que temos assistido nas últimas décadas não deixa de ser um retorno às discussões antropológicas do início do século XX, sobretudo quando a ciência é acionada, por meio da genética, por exemplo, para redefinir ancestralidades, territorialidades e identidades. Não se trata de negar as políticas de cotas raciais, que particularmente entendo serem justas e necessárias, mas é preciso repensar os termos em que esse debate está sendo proposto. A discussão sobre cotas raciais, que teve grande repercussão no âmbito da educação, já se desdobra para outras áreas (incluindo saúde, por exemplo), âmbito no qual raça também se pauta em dimensões biológicas. No plano da saúde, por exemplo, há a possibilidade de se reafirmar o equívoco acerca da existência do conceito de “raça” como uma característica biológica importante, algo intensamente criticado pelos estudos em genética a partir do pós-Segunda Guerra Mundial.
Meu desejo é que a tese possa contribuir de alguma maneira para essas discussões, ampliando a compreensão sobre esse e outros temas tão complexos e que tantas polêmicas vêm suscitando, tanto no meio acadêmico quanto na mídia, na vida política ou no cotidiano das pessoas. Entendo que as pesquisas históricas trazem elementos fundamentais para analisar como esses debates sobre raça, relações raciais, racismo e a construção das identidades étnico-raciais são complexos e só podem ser compreendidos a partir de uma leitura que envolva diferentes processos históricos.
Como um historiador das ciências, meu desejo é que a tese também ajude a problematizar o papel e as relações da ciência e dos intelectuais na sociedade, seja na produção de conhecimento e elaboração de projetos políticos, seja nas discussões sobre os limites éticos que envolvem essa intervenção.
Leia no blog de HCS-Manguinhos:
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Acervo do Museu da Genética da UFRGS inspira historiadores como Vanderlei de Souza.
Leia na revista HCS-Manguinhos:
História da genética no Brasil: um olhar a partir do Museu da Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – artigo de Vanderlei Sebastião de Souza, Rodrigo Ciconet Dornelles, Carlos E.A. Coimbra Júnior e Ricardo Ventura Santos.
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