Janeiro/2014
Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos
O tom de entusiasmo do Jornal Nacional em relação ao uso de células-tronco em pesquisas científicas acabou ofuscando a própria complexidade do tema e as dúvidas e questionamentos levantados por setores da sociedade. Esta é uma das conclusões de um estudo realizado por Carla Almeida, Franciane Lovati Dal’Cole e Luisa Massarani, autoras do artigo Controvérsia científica no telejornalismo brasileiro: um estudo sobre a cobertura das células-tronco no Jornal Nacional, publicado em História, Ciências, Saúde – Manguinhos (vol. 20/nov. 2013).
As pesquisadoras analisaram 21 reportagens transmitidas pelo Jornal Nacional entre 1o de maio de 2005 – cerca de um mês após a aprovação pelo presidente Lula da nova a Lei de Biossegurança, que permitiu o uso de células-tronco embrionárias humanas em pesquisas – e 30 de setembro de 2008, quando o Supremo Tribunal Federal negou ação de inconstitucionalidade apresentada contra a lei. Para as autoras, em diversas ocasiões, repórteres atuaram mais como ‘marqueteiros’ da ciência do que como jornalistas.
Em entrevista ao blog de HCS-Manguinhos, a jornalista especializada em ciência Carla Almeida, doutora em divulgação científica pela UFRJ, afirma que o potencial da TV para divulgar ciência a um público amplo ainda é muito pouco explorado e que falta ousadia para arriscar e inovar em popularização da ciência.
Para Carla, os poucos programas que falam de ciência costumam reforçar uma imagem idealizada da ciência ou de “ciência fantástica”, seja por falta de conhecimento dos diretores e editores ou por acharem que assim venderia mais.
No debate sobre pesquisas com células-tronco, cientistas, pacientes, políticos liberais e celebridades integram o grupo “pró”, enquanto católicos, políticos conservadores, ativistas anti-aborto e outras organizações sociais, o grupo contra. Estudos revelam que as avaliações positivas dominam o debate na mídia, e a pesquisa de vocês observou a mesma tendência no Jornal Nacional. Apresentada como assunto polêmico, o JN assumia existirem dois lados da questão, mas dava mais ênfase às declarações favoráveis de cientistas e políticos, fazendo raras referências aos riscos e limitações das pesquisas. É possível estimar o quanto essa cobertura influenciou a opinião pública e quais as consequências disso?
Não dá para estimar objetivamente como as pessoas interpretaram e incorporaram as mensagens contidas nas reportagens veiculadas pelo Jornal Nacional acerca das células-tronco no período analisado e não nos propusemos a fazer isso no nosso trabalho. Estudos de recepção são mais adequados para avaliar esse tipo de interferência, embora mesmo estes tenham dificuldades de estimar a ingerência da mídia nos hábitos e comportamento das pessoas. Trata-se de um processo complexo, com múltiplas variáveis. Nesse sentido, vale dizer que o “poder” da mídia de influenciar as pessoas tende a ser supervalorizado. Há quem defenda que ela é mais eficaz para colocar assuntos em pauta do que para definir opiniões. Por outro lado, observamos frequentemente novelas e outros programas de TV ditarem modas e interferirem de alguma forma no cotidiano das pessoas. Vemos também muita gente repetindo o que vê em telejornais como se fosse a mais pura verdade, inclusive fazendo citações – “é verdade, eu vi no jornal”. Com isso quero dizer que, pessoalmente, acho, sim, que o discurso da TV tem reflexos na vida das pessoas e que talvez as falas tendenciosas de cientistas e repórteres no JN tenham feito as pessoas que não tinham opinião prévia sobre as pesquisas com células-tronco embrionárias humanas passarem a vê-las com mais simpatia, mas estou longe de poder afirmar isso com certeza e de fazer uma análise mais profunda a respeito.
Segundo o artigo, grande ênfase foi dada aos aspectos políticos e jurídicos da questão, em detrimento de informações científicas e técnicas que permitiriam ao público entender um aspecto-chave para formar opinião: as diferenças entre as potencialidades de células-tronco adultas e embrionárias e as vantagens e desvantagens do uso de cada uma. Eis uma missão para os divulgadores de ciência? Como levar estas informações a um grande público?
O debate sobre as células-tronco embrionárias humanas não é puramente científico e, como havia uma questão juridicamente importante envolvendo-as ocorrendo no período estudado, é compreensível que as reportagens tenham focado mais estes aspectos. No entanto, como parte importante dessas reportagens apresenta depoimentos de cientistas, seria esperado que estes entrassem um pouco mais nas questões técnicas. Existe uma tendência em parte da mídia de apresentar as células-tronco embrionárias como células capazes de se transformar em qualquer tecido humano e que, por isso, têm grande potencial terapêutico. Isso não explica muita coisa. A pesquisa com essas células já era permitida em outros países e, naquele momento, ainda não havia nenhum estudo em fase clínica envolvendo-as. Por quê? Quais eram as dificuldades e as principais limitações? Por outro lado, estudos com células-tronco adultas já tinham obtido resultados importantes, que não foram muito mencionados. Em que casos as células-tronco embrionárias são imprescindíveis e em que casos as adultas resolvem? Por quê? Também ficamos sem saber. Acho, sim, que é dever dos cientistas-divulgadores e dos jornalistas de ciência enfrentar as dificuldades impostas pela complexidade da ciência e compartilhar com a sociedade, formada majoritariamente por não especialistas na área, esses conhecimentos para que ela forme uma opinião mais embasada sobre o tema. E isso tem sido feito, por ambas as partes, muito bem, mas só quando há interesse, é claro.
O artigo alega que a tendência de enfatizar benefícios e omitir limitações e questões éticas, políticas e financeiras mais complexas encaixa-se em um panorama mais amplo da cobertura de ciência pela mídia brasileira, que reforçaria uma imagem simplificada e utilitária da ciência como verdade objetiva e solucionadora de problemas, já enraizada na cultura. O que poderia ser feito para melhorar o jornalismo científico televisivo brasileiro? O tempo curto é o maior problema ou há um mau uso do tempo disponível?
O tempo curto certamente é um complicador importante, assim como as notas mais sintéticas na imprensa. Em geral, ter mais tempo/espaço significa ter a chance de explicar melhor. Ao mesmo tempo, quanto mais detalhe, precisão e profundidade, menos gente você irá atingir. Em tempos de Twitter, Facebook e mídia móvel, é cada vez mais importante ser bom e sintético. Acredito que a TV, em muitos casos, sabe ser boa e sintética. Tempo não é tudo e as ferramentas audiovisuais permitem mostrar rapidamente o que demora muito pra dizer de forma torta por escrito. O fato é que a TV, como meio de comunicação de massa, tem um potencial enorme para divulgar a ciência para um público amplo, mas é ainda muito pouco explorada nesse sentido. No telejornalismo, sempre haverá o problema de tempo; de prioridades em termos de notícias, visto que a ciência raramente está no topo delas; e muitas vezes um grande despreparo dos jornalistas, que raramente são setoristas de ciência. Mas há muitas possibilidades para além do jornalismo. O problema é que os programas que falam de ciência atualmente são poucos, passam em horários proibitivos e uma maioria ainda reforça essa imagem idealizada da ciência ou mesmo outra ainda pior da ciência fantástica, talvez por falta de conhecimento dos diretores e editores sobre o mundo real da ciência ou por achar que esse tipo de conteúdo vende mais. Enfim, a meu ver, falta ousadia para arriscar e inovar na TV no que diz respeito à popularização da ciência.
Por que a pesquisa é relevante e quais os desdobramentos possíveis?
Este estudo faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre a consolidação da Lei de Biossegurança no Brasil, que liberou a pesquisa com células-tronco embrionárias, sob determinadas condições. O foco dessa pesquisa eram os organismos geneticamente modificados, regulamentados pela mesma lei. No entanto, nos interessamos muito pela introdução do tema das células-tronco no debate, que acabou sendo importante no contexto de aprovação da lei. Em meio a uma forte divisão de posições em relação aos transgênicos, as células-tronco surgiram sensibilizando parlamentares e a opinião pública, mudando o foco das discussões no Congresso na fase final de tramitação da lei. Pesquisadores, sobretudo da área de genética, engajaram-se muito no debate, marcando presença no congresso, mobilizando cadeirantes, entre outras iniciativas. Surpreende que logo após a aprovação tenha-se questionado justamente a parte da lei que tinha obtido mais apoio. Acompanhamos tudo de perto e como pesquisadoras e jornalistas, nos interessamos em saber como o mais importante telejornal brasileiro havia abordado o tema. Já havia pesquisas similares realizadas fora do Brasil e seguimos alguns protocolos para analisar a cobertura do JN. Acho importante sair do “achismo” – quase todo mundo tem convicções pouco embasadas sobre o comportamento da mídia – e analisar, com base em dados reais, os posicionamentos de veículos de comunicação. Os resultados me fazem construir, aos poucos, um olhar mais crítico como pesquisadora, jornalista e cidadã. Quanto aos desdobramentos, continuamos pesquisando controvérsias científicas, na TV e fora dela.
Que outras “grandes polêmicas” podem ser alvo de estudos como este?
As biotecnologias são um prato cheio: transgênicos, clonagem, testes genéticos… As nanotecnologias e as mudanças climáticas também são ótimos objetos de estudos para quem deseja estudar as relações entre ciência, mídia e sociedade.
Leia na revista HCS-Manguinhos:
Controvérsia científica no telejornalismo brasileiro: um estudo sobre a cobertura das células-tronco no Jornal Nacional – artigo de Carla Almeida, Franciane Lovati Dal’Cole e Luisa Massarani (vol. 20/nov. 2013)
Como citar este post [ISO 690/2010]:
No partido da ciência. Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. [viewed 15 January 2014]. Available from: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/no-partido-da-ciencia/