Liga de 1900 é marco na luta contra a tuberculose no Brasil

Março/2017

Haendel Gomes | COC/Fiocruz

Os primeiros casos de tuberculose datam de mais de 5.000 anos a.C., segundo evidências arqueológicas em múmias egípcias. A presença da doença também é relatada na América do Sul, com base em estudos em múmia peruana com mais de 3 mil anos.

No Brasil, a história da tuberculose abrange um contexto político, social e científico com a colonização do país e atingiu a população menos favorecida. Considerada o “mal romântico” no século 19 – versão difundida entre os poetas da época –, a doença passou a ser considerada um problema de saúde no século passado. Historiadora da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde Dilene Raimundo do Nascimento abordou o tema em entrevista para o Especial Tuberculose da Agência Fiocruz de Notícias. A pesquisadora falou também sobre o trabalho da Liga Brasileira contra a Tuberculose no Brasil, criada em agosto de 1900 por médicos e intelectuais. O “Brasil não podia deixar de seguir a corrente científica e civilizadora da época”, destacou Dilene ao se referir à justificativa para a criação da Liga.

Segundo a historiadora, Oswaldo Cruz elaborou um programa de controle da doença que não chegou a ser implementado. Outra ação importante nesse período foi a Reforma Carlos Chagas. Ela possibilitou a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública, ao qual estava subordinada a Inspetoria de Profilaxia da Tuberculose. “A Inspetoria foi o primeiro órgão estatal a se ocupar com a tuberculose”, lembrou a pesquisadora. O combate à doença passou a ser mais eficaz no final da década de 1970 sob a coordenação do Ministério da Saúde. Acompanhe os principais pontos da entrevista concedida por Dilene Raimundo do Nascimento.

Em que contexto surge a Liga Brasileira contra a Tuberculose no Brasil no início do século 20?

Dilene Raimundo do Nascimento: A Liga Brasileira contra a Tuberculose é criada em 4 de agosto de 1900, por iniciativa de médicos e intelectuais da cidade do Rio de Janeiro, com o propósito de combater a tuberculose que causava alta mortalidade, principalmente na Capital Federal. Eles justificaram que o Brasil não podia deixar de seguir a corrente científica e civilizadora da época. Havia também um debate, sobretudo na Europa, sobre a assistência pública e privada como práticas complementares para enfrentar as questões sociais advindas da industrialização e da desigualdade. Nesse sentido, as elites sociais brasileiras discutiam a questão e assumiram papéis reformadores.

Como se dava a atuação da Liga?

Dilene Raimundo do Nascimento: A Liga tentou criar sanatórios de início, mas seu custo era muito alto para os recursos de que dispunha. Em seu segundo Estatuto, incluiu a implantação de dispensários nos seus propósitos. Diz-se que os dispensários eram peças fundamentais no esquema antituberculoso já vigente na Europa. A Liga atuava através dos dispensários, prestando assistência médico-social; criou um Serviço de Assistência Domiciliária para atender o doente de tuberculose impossibilitado de se locomover até o dispensário e atuava de forma bastante intensa na propaganda da curabilidade da doença e dos esclarecimentos sobre a mesma. Seus membros publicavam matérias nos jornais da época, realizavam conferências nas fábricas, colégios, quartéis e clubes profissionais. Essas conferências depois eram impressas e distribuídas amplamente, assim como publicadas em revistas médicas. Em 1913, criou sua própria revista mensal chamada Almanack.

Qual a participação de Oswaldo Cruz nessa luta?

Dilene Raimundo do Nascimento: Oswaldo Cruz não teve papel fundamental no combate à tuberculose. Depois de controladas as epidemias [febre amarela, peste bubônica e varíola], ele elaborou um programa de controle contra a tuberculose, mas que não foi, nem em parte, implementado. Na sua proposta, Oswaldo Cruz não considerou a existência da Liga.

Por quê?

Dilene Raimundo do Nascimento: Oswaldo Cruz era eminentemente gestor da ciência. Os líderes da Liga eram médicos professores na universidade, tinham clínicas particulares, autores de artigos publicados em jornais e outros veículos destinados à população em geral, além de revistas médicas, e intelectuais. O cientista não participava da Liga, nem da universidade; ele estava ocupado com sua missão de controlar e erradicar as epidemias, autor de inúmeros artigos, voltados para a classe médica e gestores da saúde. Seu plano foi publicado na íntegra em um relatório da Liga, mas foi a única menção a Oswaldo Cruz em sua história. Um dos tisiologistas que entrevistamos disse que, quando o médico se formava na década de 1910,1920, tinha três opções: fazer ciência no Instituto Oswaldo Cruz, gestão da saúde em órgão do governo e aprimoramento do saber médico na universidade.

De que maneira a Reforma Carlos Chagas ajudou no combate à tuberculose no início do século passado?

Dilene Raimundo do Nascimento: A Reforma Carlos Chagas criou o Departamento Nacional de Saúde Pública, em 1920; e subordinado ao Departamento estava a Inspetoria de Profilaxia da Tuberculose. A Inspetoria foi o primeiro órgão estatal a se ocupar com a tuberculose. Sua ação, inicialmente, foi de propaganda sobre a tuberculose por meio de cartazes informando sobre a doença e as maneiras de evitá-la. Em 1921, criou o primeiro Dispensário de Tuberculose da Saúde Pública, localizado em Botafogo. Em 1927, a Inspetoria havia criado cinco dispensários na Capital Federal.

A Reforma significou a adoção efetiva de política pública no enfrentamento do problema?

Dilene Raimundo do Nascimento: Sim, de forma bastante incipiente. Somente em 1930, o Estado tomou para si a responsabilidade sobre as questões sociais como projeto de governo, incluída aí a assistência aos tuberculosos. E em 1941, o Estado ampliou a vacinação com o BCG [Bacilo de Calmette e Guérin].

Quais os recursos técnicos que ajudaram no diagnóstico da doença no Brasil?

Dilene Raimundo do Nascimento: Os recursos técnicos que ajudaram no diagnóstico da doença foram RX [radiografia] de tórax, exame de escarro e o PPD [teste tuberculínico].

A partir de que momento o tratamento da tuberculose ficou mais eficaz no país?

Dilene Raimundo do Nascimento: Os medicamentos para o tratamento da tuberculose começaram a surgir na década de 1940, mas somente em fins de 1970 é que se chegou a um tratamento mais eficaz no Brasil, sob a coordenação do Ministério da Saúde.

A doença representou importante causa de óbitos no século 19. Mesmo assim, havia uma percepção de que a tuberculose possuía um aspecto positivo, especialmente no meio intelectual? Por que isso acontecia?

Dilene Raimundo do Nascimento: A tuberculose era vista como positiva no meio artístico quando sua concepção era de doença romântica. Consideravam que a “doença da alma” os diferenciava e contribuía para sua produção artística. Segundo Claudine Herzlich, isso acontecia até que o doente artista se visse numa situação de degradação da saúde que não conseguia mais produzir a sua arte. Também um tisiologista entrevistado disse que a tuberculose era vista como doença dos artistas, porque eles deixavam de comer para comprar suas tintas e pincéis; assim se tornando vulneráveis à tuberculose.

De que maneira as atuais ações de combate à tuberculose podem ser mais eficazes?

Dilene Raimundo do Nascimento: Primeiro, diminuir a desigualdade; segundo, aprimorar cada vez mais o Sistema Único de Saúde (SUS) e, terceiro, valorizar cada vez mais a atuação dos agentes de saúde para evitar o abandono de tratamento.

Por que o Rio de Janeiro ainda apresenta índices tão grandes da doença, sendo considerado recordista de casos?

Dilene Raimundo do Nascimento: Temos que levar em conta que o Rio de Janeiro ainda tem bolsões de pobreza que facilitam a infecção e dificultam o tratamento, que é feito somente nos postos de saúde.

Leia mais no Especial Tuberculose da Agência Fiocruz de Notícias.

Artigos em HCS-Manguinhos:

Cavalcanti, Juliana Manzoni. Uma história institucional da tuberculose no Chile: o Programa de Controle da Tuberculose, 1973-2013. Dez 2016, vol.23, no.4

Martins, William de Souza. A clausura enferma: petições para a saída do Convento da Ajuda no Rio de Janeiro para tratamento de doenças contagiosas, c.1750-1780. Set 2016, vol.23, no.3

Bedrikow, Rubens. Esclarecendo o caso dos homônimos Manoel de Abreu. Set 2015, vol.22, no.3

Vianna, Paula V. Carnevale, Zanetti, Valéria and Papali, Maria Aparecida Geografia, saúde e desenvolvimento urbano no interior paulista na passagem para o século XX: Domingos Jaguaribe e a construção da Estância Climática de Campos do Jordão. Dez 2014, vol.21, no.4

Costa, Luís Manuel Neves. A Assistência da Colónia Portuguesa do Brasil, 1918-1973. Jun 2014, vol.21, no.2

Ayres, Lílian Fernandes Arial et al. As estratégias de luta simbólica para a formação da enfermeira visitadora no início do século XX. Set 2012, vol.19, no.3

Santos, Luiz Antonio de Castro and Faria, Lina Em busca da aldeia sanitária: tuberculose, saúde e cultura na Argentina desde finais do século XIX. 2010, vol.17, no.3

Zanetti, Valéria et al. Boletim Médico: prescrição dos tisiólogos para a cura da cidade de São José dos Campos (1930-1935). 2010, vol.17, no.3

Fernandes, Tania Maria. Sol e trevas: histórias sociais da tuberculose brasileira. Dez 2004, vol.11, no.3

Antunes, José Leopoldo Ferreira et al. Tuberculose e leite: elementos para a história de uma polêmica. Dez 2002, vol.9, no.3

Sheppard, Dalila de Sousa. A literatura médica brasileira sobre a peste branca: 1870-1940. Jun 2001, vol.8, no.1

Pôrto, Ângela. A vida inteira que podia ter sido e que não foi: trajetória de um poeta tísico. Fev 2000, vol.6, no.3

Bertolli Filho, Claudio. Antropologia da doença e do doente:percepções e estratégias de vida dos tuberculosos. Fev 2000, vol.6, no.3

Gonçalves, Helen. A tuberculose ao longo dos tempos. Out 2000, vol.7, no.2

Soares, Pedro Paulo. A dama branca e suas faces: a representação iconográfica da tuberculose. Out 1994, vol.1, no.1

Herrero, Maria Belen and Carbonetti, Adrian. La mortalidad por tuberculosis en Argentina a lo largo del siglo XX. Jun 2013, vol.20, no.2

Ortega Martos, Antonio Miguel. ¿Colonialismo biomédico o autonomía de lo local? Sanadores tradicionales contra la tuberculosis. Dic 2010, vol.17, no.4

Álvarez, Adriana. La experiencia de ser un ‘niño débil y enfermo’ lejos de su hogarel caso del Asilo Marítimo, Mar del Plata (1893-1920). Mar 2010, vol.17, no.1

Carbonetti, Adrián Carlos Alfredo. La tuberculosis en la literatura argentinatres ejemplos a través de la novela el cuento y la poesía. Feb 2000, vol.6, no.3

Armus, Diego. Milonguitas” en Buenos Aires (1910-1940)tango, ascenso social y tuberculosis. 2002, vol.9

Leia no Blog de HCS-Manguinhos:

Uma breve história da tuberculose
Publicação bilíngue (inglês/português) da Universidade de York traz imagens e textos analíticos

‘La ciudad impura’, de Diego Armus, disponível para download gratuito
Livro reconstrói a história social da tuberculose em Buenos Aires entre 1870 e 1950

Retratos dos pulmões
Reportagem da Pesquisa Fapesp aborda a invenção da abreugrafia, a máquina para detectar tuberculose, rememorada no livro O mestre das sombras – Um raio X histórico de Manoel de Abreu.

Livros e DVDs:
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