Julho/2015
“O amarellão constitue a maior calamidade do Brasil. Emquanto não for dado combate decisivo a esse mal não conseguirá o paiz prosperar na proporção das suas riquezas naturaes e das modernas conquistas da sciencia”. Assim definiu a ancilostomíase o médico sanitarista Belisário Penna, na década de 1920, na obra Amarellão e Maleira. A doença era o mal que acometia o personagem Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, e grande parte da população rural brasileira.
Para combater a endemia rural de ancilostomíase entre 1916 e 1923, o Distrito Federal e 11 estados brasileiros – Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Maranhão, Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Bahia, Santa Catarina, Pernambuco e Alagoas – estabeleceram acordos de cooperação com a divisão internacional de saúde da Fundação Rockefeller, a International Health Board (IHB). A doença era entendida, naquele contexto, como “evitável” e responsável, em parte, pelo atraso do Brasil.
As atividades de combate à doença realizadas em municípios do Rio Grande do Sul a partir da cooperação entre a fundação e o governo estadual entre 1920 e 1923 e o trabalho mantido pelo governo após o término da cooperação até 1929 foram o tema de Ana Paula Korndörfer, pesquisadora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no workshop “Doenças Tropicais na América Latina e no Caribe”, realizado na Fiocruz, no Rio, de 1º a 3 de julho.
De acordo com a historiadora, nas décadas de 1910 e 1920 defensores do movimento sanitarista passaram a denunciar o abandono e as precárias condições de saúde de grandes parcelas da população e conclamavam o Estado a intervir. Para eles, estados e municípios, encarregados dos serviços sanitários a partir da Constituição de 1891, não tinham competência para solucionarem sozinhos e de maneira eficaz os problemas sanitários. A necessidade do combate às endemias rurais, como a ancilostomíase, a malária e a doença de Chagas, era constantemente enfatizada. A recuperação da população acometidas pelas doenças era associada às possibilidades de progresso do país.
As populações rurais passaram a ser incluídas nas políticas de saúde do governo federal, com destaque para a criação, em 1918, do Serviço de Profilaxia Rural e, em 1920, da Diretoria de Saneamento e Profilaxia Rural do Departamento Nacional de Saúde Pública. Os estados puderam solicitar o auxílio do governo federal para combater as endemias rurais a partir de acordos de cooperação, com a contrapartida da perda de autonomia. Também podiam recorrer à Fundação Rockefeller, instituição norte-americana que promovia ações de saneamento e combate a endemias rurais. O objetivo da fundação não era colocar a doença sob controle, mas realizar demonstrações que estimulariam o interesse público e levariam à participação de agências estatais e locais no trabalho.
Diversos estados brasileiros recorreram à cooperação com o governo federal e/ou com a Fundação Rockfeller para combater a ancilostomíase. O primeiro acordo foi estabelecido com o Rio de Janeiro em 1916. As atividades de combate à ancilostomíase e de saneamento rural eram compostas por quatro partes: a realização de levantamento preliminar sobre a situação da doença; a instalação de postos de demonstração do método intensivo de combate à ancilostomíase; a realização de trabalho de educação sanitária; e a melhoria das condições sanitárias, a partir do estabelecimento e da execução de regulamentações que determinassem a instalação de latrinas.
Os contatos entre representantes da Fundação Rockfeller e o governo do Rio Grande do Sul foram iniciados em 1919. Até aquele momento, o governo estadual não havia realizado ações de combate à verminose.
Levantamento realizado em 1920 indicou que o estado apresentava os menores índices da ancilostomíase no país, mas algumas localidades apresentavam índices elevados e os índices das verminoses em geral também eram bastante significativos. Foi estabelecida até 1923 a cooperação entre o governo estadual e a IHB para combater a ancilostomíase nos municípios onde a situação da doença havia se revelado mais grave. O governo arcaria com 60% dos custos das atividades e a fundação, com 40%. Postos de demonstração do método intensivo de combate à ancilostomíase foram instalados em nove localidades do estado: Montenegro, Torres, Conceição do Arroio, São Sebastião do Caí, Ilha dos Marinheiros (Rio Grande), São Leopoldo, Taquara, Gravataí e Cachoeira.
O método consistia, originalmente, num ciclo de exames e tratamentos até a constatação da cura do paciente. Porém, sofreu modificações no Brasil e, em 1920, já não se buscava mais a confirmação da cura. Em 1923, quando a cooperação chegou ao fim, um número bem menor do que o total de atendidos fora considerado curado, ou seja, havia realizado o tratamento até o fim. A construção de latrinas, considerada parte indispensável do combate à ancilostomíase e que havia sido repassada aos municípios, também alcançou resultados ínfimos no Rio Grande do Sul.
O governo estadual assumiu o trabalho a partir de 1924, com a organização de um Serviço de Postos de Profilaxia Rural estadual nos moldes do trabalho realizado pela fundação, mas com algumas modificações, como a preocupação de combater as verminoses em geral e não apenas a ancilostomíase. Nove localidades contaram com atividades temporárias entre 1924 e 1929, quando foi encerrado o Serviço: Taquara, Gravataí, Cachoeira, Santo Antônio da Patrulha, Conceição do Arroio, São Jerônimo, Viamão, Rio Pardo e Taquari. Outros municípios requisitaram a instalação de postos, mas os pedidos foram negados sob a alegação de falta de verbas.
Ana Paula revelou que os resultados alcançados pelo Serviço estadual foram bem semelhantes aos alcançados pelos postos em cooperação com a Fundação: milhares de pessoas tratadas, um número significativamente menor de pessoas consideradas curadas e dificuldades no que dizia respeito à instalação de latrinas. O Serviço foi encerrado em 1929 sob duras críticas com relação à sua eficácia.
“A realização das ações de combate à ancilostomíase no país dependia não apenas da cooperação formalizada entre os governos estaduais e a IHB, mas também da relação estabelecida entre os diversos envolvidos, direta ou indiretamente, no dia a dia das campanhas, como as equipes de campo, os chefes políticos e religiosos locais, os diversos agentes de cura e a população em geral. Isto foi verificado também no Rio Grande do Sul”, explicou a pesquisadora.
Em 1929, o médico e Diretor de Higiene do Rio Grande do Sul Fernando de Freitas e Castro elaborou uma reforma inspirada no modelo norte-americano de organização em saúde pública divulgado pela Fundação Rockfeller – os health centers ou centros de saúde. A Reforma de 1929 foi apenas parcialmente implantada no estado, em virtude de questões políticas e econômicas decorrentes da Revolução de 1930, mas a proposta influenciou, durante décadas, a organização sanitária do Rio Grande do Sul.
Baixe a tese de doutorado “An international problem of serious proportions”: a cooperação entre a Fundação Rockefeller e o governo do estado do Rio Grande do Sul no combate à ancilostomíase e seus desdobramentos (1919-1929), de Ana Paula Korndörfer.
Leia em HCS-Manguinhos:
Korndörfer, Ana Paula. Para além do combate à ancilostomíase: o diário do médico norte-americano Alan Gregg. Dez 2014, vol.21, no.4.
Palmer, Steven. “O Demônio que se transformou em vermes”: a tradução da saúde pública no Caribe Britânico, 1914-1920. Set 2006, vol.13, no.3.
Lacerda, Aline Lopes de. Retratos do Brasil: uma coleção do Rockefeller Archive Center. Dez 2002, vol.9, no.3.
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