Abril/2020
Glauber Gonçalves | Casa de Oswaldo Cruz
Ao tomar a mulher como objeto de seus discursos e práticas ao longo do século 20, a medicina e a ciência estiveram no centro de relações de poder que contribuíram para produzir desigualdades de gênero e exclusão social. A partir da segunda metade do século passado, esses discursos e práticas passaram a ser problematizados de forma mais sistemática pelo movimento feminista, por médicas e cientistas próximas a ele e por historiadoras. A produção historiográfica sobre esses processos são tema de artigo publicado nesta edição da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos (v. 27, n.1, jan./mar. 2020), que está disponível integralmente para acesso no portal SciELo.
Professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Ana Paula Vosne Martins assina a revisão historiográfica ‘A mulher, o médico e as historiadoras: um ensaio historiográfico sobre a história das mulheres, da medicina e do gênero’. Em sua análise crítica, a historiadora lança um olhar sobre autoras que discutiram, a partir de diferentes contextos, as relações de autoridade estabelecidas pela medicina e a ciência sobre as mulheres. Vosne Martins começa pela produção dos anos 1960 e 1970, que buscou reparar o apagamento das mulheres na história e denunciar processos históricos de opressão vistos como resultantes da organização do poder médico e masculino.
Embora reconheça a contribuição dada ao campo por essas obras, a autora do artigo aponta suas limitações, inclusive relativas à falta de evidências para algumas de suas formulações. Vosne Martins contrapõe a elas visões de autoras que, a partir de referências teóricas sociológicas, aportaram mais nuance ao debate ao retirar as mulheres do papel de vítimas passivas e reconhecer as diferentes formas de reação esboçadas por elas ao longo da história. A historiadora destaca, nesse momento, a importância da introdução das categorias gênero e classe para lançar um olhar tanto sobre a organização das profissões médicas quanto às mulheres por elas atendidas.
A análise da pesquisadora contempla ainda a produção historiográfica sobre corpo, gênero, ciência e medicina dos anos 1980 e 1990, que passa a encarar o corpo menos do ponto de vista biológico ou material, reconhecendo-o como “um lugar social e cultural dotado de história”. Em uma parte considerável desses estudos, aponta a pesquisadora, é central o conceito de representação, no sentido de “criação histórica e cultural da realidade”. Ela encerra sua análise apontando que a história do corpo e do gênero tem potencial para preencher as lacunas deixadas pela ausência das experiências das mulheres – e dos homens – com seus corpos, que perpassa a maior parte da produção acadêmica no campo da história das mulheres, da ciência e da medicina.
A “tragédia da talidomida” nas páginas do Jornal do Médico (Portugal)
A cobertura da chamada “tragédia da talidomida” pelo Jornal do Médico, em Portugal, é o tema do artigo que abre a seção Análise desta edição da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos. O medicamento, colocado no mercado por um laboratório alemão na década de 1950, foi utilizado em diversos países, particularmente por mulheres grávidas que sofriam de enjoos. Esse uso resultou no nascimento de milhares de bebês com malformações. O estudo apontou a morosidade do jornal em publicar matérias sobre os efeitos da droga e identificou a construção de um discurso que isentava os médicos de responsabilidade no fenômeno.
Integra ainda este número de História, Ciências Saúde – Manguinhos um estudo sobre o papel da psicologia na transformação dos modos de conceber a infância entre as décadas de 1950 e 1970, tendo como base a análise de crônicas e colunas de Clarice Lispector. Outro artigo contrasta o conteúdo das conferências ministradas por Michel Foucault no Rio de Janeiro em 1974, cujo foco eram as relações entre a ética e a medicina social, com os materiais que ele utilizou para prepará-las, hoje sob a guarda da Biblioteca Nacional da França.
A seca da década de 1870 e o declínio do escravismo
No contexto da seca que atingiu o Império do Brasil em 1877 e 1879, outro artigo desta edição analisa um conjunto de artigos em que o engenheiro e abolicionista André Rebouças comparou a estiagem do Ceará com a da Índia em busca de um modelo de administração a ser replicados nas províncias do norte do país. Em nível mundial, o período foi marcado pela consolidação de preceitos liberais de desregulação do comércio de cereais. O estudo aponta que, em plena crise do escravismo, Rebouças defendia o potencial da área afetada pela seca como provedora de trabalhadores “livres”. Para ele, o socorro à população afetada não deveria ser gratuito, sob o risco de empurrá-los para a ociosidade, mas “aparecerem revestidos na forma de salários”.
Esta edição traz também dois artigos que se dedicam a questões relacionadas às Minas Gerais do século 18. O primeiro contém uma análise, a partir da ótica da saúde, dos crimes violentos cometidos na comarca de Vila Rica naquele período. Os autores identificaram o predomínio de crimes contra o corpo, com consequentes lesões corporais provocadas predominantemente por objetos perfurocortantes. O segundo artigo discute o uso simbólico da natureza e da mineração na construção de um discurso negativo das Minas Gerais, a partir da análise de um documento inédito, a “Carta que veio das minas”, de 1727.
Completam este número artigos que discutem temas como: a história da velhice em São Paulo e no Rio na década de 1930; os estudos sobre manguezais da cientista Marta Vannucci; a criação da Escuela de Salud Pública de Buenos Aires em 1958; a publicação, por uma livraria francesa, do livro sobre cálculo vetorial do professor Theodoro Ramos, da Escola Politécnica de São Paulo, em 1930; educação intercultural e atendimento diferenciado à saúde do povo maxakali; e saúde e alimentação na pauta no primeiro Congresso Médico Amazônico (Belém, 1939).
Sumário da edição (v. 27, n.1, jan./mar. 2020)