Novembro/2024
Vivian Mannheimer | Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
Atravessamos um período de urgente preocupação climática. No Brasil, seca intensa, incêndios devastadores em diversos biomas e desastres como as chuvas que atingiram o Sul do país este ano. No mundo, inundações no Saara e em muitos outros países, elevação das temperaturas e do nível do mar. Para o campo da história, apesar de hoje os estudos que tratam de mudanças climáticas mostrarem-se mais atuais que nunca, esse não é um tema novo, uma vez que muitos autores nos séculos 18 e 19 já pensavam a saúde e a doença a partir de suas relações com o ambiente e o clima. A reflexão é do pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) André Felipe Cândido da Silva.
Nos últimos anos, o pesquisador tem se dedicado a temas ambientais e às transformações ecológicas que caracterizam o chamado Antropoceno, termo que designa uma nova época geológica definida pelo impacto do homem na Terra. Lidera, entre outras, pesquisas como a que aborda o trabalho do limnólogo alemão Harald Sioli e a rede científica germano-brasileira que se dedica ao estudo das dinâmicas ecológicas da bacia amazônica entre 1939 e 2004.
André Felipe também coordena o projeto de pesquisa A Amazônia como microcosmo do Antropoceno: a história das pesquisas transnacionais em ecologia amazônica e os impactos ambientais da Grande Aceleração, que tem como objetivo analisar distintos aspectos da Amazônia entre 1952 e 2002. Entre as perspectivas abordadas, constam as redes científicas dedicadas ao papel da floresta na regulação climática e hidrológica, nos estudos de biodiversidade, além de projetos de exploração de recursos e do processo de globalização política que a tornou um ícone do movimento ambientalista internacional.
Mudanças climáticas e a saúde: um conhecimento que não é de agora
André Felipe fala sobre como a relação entre clima e saúde foi percebida ao longo da história. Segundo o pesquisador, as mudanças climáticas interferem na saúde podendo influenciar na propagação de vetores – como mosquitos que transmitem doenças -, na qualidade das águas e do ar, na fisiologia dos organismos e na produção de alimentos. Ele destacou que para a Fiocruz é muito importante pensar as mudanças climáticas como parte de uma agenda que olhe para as pandemias recentes, e ressalta que doenças infecciosas como leishmaniose, malária, dengue e outras arboviroses são particularmente sensíveis a essas mudanças.
André Felipe publicou dois trabalhos sobre a relação entre Covid-19 e as transformações ecológicas compreendidas como Antropoceno. Logo no início da pandemia escreveu artigo sobre o tema, com o então pesquisador de pós-doc Gabriel Lopes. Em outro estudo, apresentado em 2023 no 5º Congresso Luso-Brasileiro de História da Medicina Tropical, na Universidade Nova de Lisboa, em Portugal, ele examina como o novo coronavírus e o Antropoceno desafiam a escrita histórica, especificamente, da história das doenças:
“Esses trabalhos foram um compilado de discussões e debates sobre como as pandemias de origem zoonótica e as doenças infecciosas são afetadas pelas mudanças climáticas, o que não é apenas uma questão importante para a saúde pública contemporânea, mas também interfere na maneira de olharmos para o passado, convidando a novas formas de escrever a história das doenças”.
Para o pesquisador, a Covid-19 trouxe à tona a discussão sobre a pandemia como parte de uma crise sistêmica, o que ocorreu não apenas entre cientistas e historiadores da doença e da medicina, mas também na esfera pública, na grande mídia e nas redes sociais. “Durante a pandemia, na imprensa, nas redes, ouvimos frases como ‘isso é uma expressão da crise ecológica’, ‘a humanidade é o vírus’. E essa questão não é super nova”.
Ele contou que há correntes nos séculos 18 e 19 que pensavam a saúde de forma abrangente e integrada ao meio ambiente. Para ele, isso é bastante claro no século 19, porque a própria maneira de conceber as inter relações entre doença, corpo e ambiente tinha base nas ideias do neo-hipocratismo, de que os corpos precisam estar em equilíbrio com o ambiente e que o desequilíbrio causa a doença.
André Felipe também exemplificou estudos realizados nessa área por alunos do Programa de Pós-Graduação das Ciências e da Saúde (PPGHCS). Entre os estudos citados, consta a pesquisa de Elder Sidney Saggioro sobre a malária no interior de São Paulo, cuja proposta é pensar essas epidemias conectando-as com a dinâmica do Tietê:
“A malária é uma doença muito dependente de fatores ecológicos, muito ligada a questões climáticas, aos regimes hídricos. Ela convida a pensar a história das doenças não apenas como a narrativa campanha de saúde pública focada em vacinas e antibióticos; essa é uma história que também envolve atores que pensaram doença e saúde de maneira a integrar as relações biológicas, as relações com o ambiente e com o clima”.
Além da relação entre mudanças climáticas e doenças infecciosas, o pesquisador chamou a atenção para a questão das contaminações tóxicas das paisagens, o que é uma pauta importante para o seu grupo de pesquisa.
Foco na Amazônia e o caráter transnacional das pesquisas
A COC/Fiocruz tem uma forte tradição de pesquisas sobre a Amazônia, o que pode ser visto em muitos estudos sobre o tema – por exemplo, nos trabalhos de Dominichi Miranda de Sá, Marcos Chor Maio, Rômulo de Paula Andrade, Magali Romero Sá, Jaime Benchimol e Lorelai Kury – , e números especiais na revista História Ciências Saúde – Manguinhos. A razão disso, segundo André Felipe Cândido da Silva, deve-se “à importância incontornável que a Amazônia tem nos estudos científicos e na saúde pública e pela própria densidade das pesquisas que vão se realizar a partir da segunda metade do século 20”. Ele disse ainda que o bioma pode ser visto como uma representação dos processos e impactos globais que caracterizam o Antropoceno, refletindo as interações e tensões entre os humanos e a natureza em uma área específica.
“É quase um truísmo afirmar que é importante conservar a Amazônia por causa de seu papel na regulação climática, da chuva e do ciclo da água. A Amazônia é uma região vital para o equilíbrio do clima, da biodiversidade e dos recursos naturais, representando muitos dos desafios globais enfrentados em termos de conservação ambiental e impacto humano”.
O caráter transnacional do tema – seja pelo interesse internacional na Amazônia ou pela própria natureza além-fronteiras das mudanças climáticas e da forma de organização das ciências no pós-Segunda Guerra – reflete-se nas pesquisas. Ao mesmo tempo, há também a preocupação de lançar luz à perspectiva brasileira e considerar as interações com os conhecimentos daqueles que vivem na floresta: “alguns autores chamam isso de uma história conectada. Ou seja, a construção dos conhecimentos sobre ecologia e clima da Amazônia exige que os processos históricos sejam pensados a partir de interconexões de fluxos, circulação de conhecimentos, pessoas e tecnologias”.
O pesquisador também destacou o caráter transnacional da própria Amazônia, que se estende por nove países (Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Venezuela e Suriname), acrescentando que o bioma ultrapassa as fronteiras políticas e que a história ambiental, por si só, já problematiza a ideia de uma história nacional, uma vez que rios, biomas e paisagens atravessam territórios. Além disso, sempre houve na região grandes projetos com financiamento de instituições internacionais e multilaterais. André Felipe ressaltou ainda que há uma perspectiva na escrita da história de pensar a Amazônia de forma global desde a época colonial.
“Há estudos históricos que mostram isso, por exemplo, aqueles que envolvem as chamadas “drogas do sertão” e indicam que vários desses produtos faziam parte de um circuito global de circulação de mercadorias, de commodities. Essa tendência se perpetuou nos séculos posteriores. Em períodos mais recentes, a borracha é o caso mais emblemático, ilustrando como a Amazônia tem sido historicamente vista como fonte de recursos naturais das cadeias globais de extrativismo”.
Analisando a forma como a história lidou com o clima, André Felipe afirma que por muito tempo as ciências sociais estiveram intimamente ligadas ao tema, no entanto, muitas vezes de maneira determinista, inclusive, justificando o colonialismo: “as ideias sobre clima em muitos casos envolveram uma visão racista a partir do pensamento de que povos, clima e ambiente tinham seus respectivos lugares. Isso foi uma estrutura para a legitimação científica do conceito de raça. Ou seja, assim como plantas e animais são ligados a ambientes específicos, o mesmo aconteceria com as raças humanas. Então, por muito tempo, a questão do clima, do ambiente, foi muito ligada a essa visão determinista, que teve consequências danosas ao servir de suporte para o racismo e colonialismo”.
Para ele, no entanto, agora, com a emergência da questão das mudanças climáticas contemporâneas, o clima vem sendo recuperado como “partícipe da história” e não mais a partir da ideia de que o clima determina a história e o caráter da sociedade. “Não é mais possível pensar processos climáticos sem pensar em seus enredamentos com agência humana, com as organizações sociais e processos políticos”.
Fonte: Agência Fiocruz de Notícias
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