Novembro/2020
Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos
Há mais de cem anos, quando a peste bubônica voltou causar epidemias em grandes cidades do mundo, foi a interação direta e indireta entre grupos de cientistas do Brasil, da Índia e da França – e não seus esforços isolados – que levou a importantes inovações, como soros, vacinas e formas de combate a vetores. É o que demostra o historiador Matheus Alves Duarte da Silva na sua tese de doutorado intitulada Quand la peste connectait le monde: production et circulation de savoirs microbiologiques entre Brésil, Inde et France (1894-1922) – Quando a peste conectou o mundo: produção e circulação de saberes microbiológicos entre Brasil, Índia e França (1894-1922) -, recém-apresentada à École doctorale de l’École des hautes études en sciences sociales (Ehess), em Paris, e produzida com apoio da Capes.
Duarte defende que a circulação na França de saberes elaborados no Brasil e na Índia é um exemplo de que a microbiologia, vista recorrentemente como uma ciência europeia exportada ao resto do mundo, ou como o produto de tradições científicas nacionais, possui na verdade trajetórias mais complexas, globais. Ele foi orientado pelos professores Dominique Pestre e Kapil Raj, expoentes da vertente historiográfica conhecida como história global, e teve em sua banca examinadora os professores Jean-Paul Gaudillière e Marcos Cueto – pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e editor-científico da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Duarte agora faz pós-doutorado no Departamento de Antropologia Social da Universidade de St. Andrews, Reino Unido, com apoio do Wellcome Trust, trabalhando no projeto The Global War Against the Rat and the Epistemic Emergence of Zoonosis.
Nesta entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos, ele explica como aplicou a perspectiva da história global sobre este episódio da história da ciência e da saúde.
Com base em fontes de arquivos políticos e institucionais do Brasil, França, Itália e Grã-Bretanha, a sua tese examina as respostas científicas e médicas à peste bubônica em Bombaim, Rio de Janeiro, São Paulo e Paris de 1894 a 1920. As respostas foram muito diferentes em cada lugar e época?
As diferenças existiram em função de aspectos sanitários e políticos de cada um desses lugares. A peste não se manifesta da mesma maneira em cada um deles, nem as autoridades e cientistas reagem a ela da mesma forma. Bombaim é, à época, a capital econômica do Raj britânico e vai ser atingida por epidemias graves e recorrentes de peste ao longo de mais de vinte anos, enquanto Paris é confrontada com a peste apenas em 1920. Já a cidade de São Paulo controla rapidamente a epidemia, entre 1899-1900, enquanto no Rio, que é a maior e mais importante cidade do país, a peste continua sendo um problema de saúde pública até pelo menos a Grande Guerra. Porém, a minha tese não é uma história comparada, mas “conectada”. Então, o que eu também quis mostrar, para além das diferenças, foi como determinadas convergências emergiram ao longo do tempo entre esses quatro locais. Não uma convergência em um sentido clássico da história da microbiologia – na qual Paris seria vista como o centro a partir do qual tudo se irradia e a única coisa que os outros lugares podem fazer é reagir ou se acomodar – mas como um processo dinâmico e policêntrico. Um exemplo de uma dessas convergências: no início da pandemia, em 1896-1897, o Instituto Pasteur de Paris é contrário ao uso da vacina antipestosa de Haffkine, inventada em Bombaim. Porém, a partir do desenvolvimento da controvérsia com Haffkine e da observação do uso no Rio de Janeiro de uma vacina semelhante àquela criada na Índia, os franceses mudam de ideia e aplicam a vacinação antipestosa em Paris, em 1920.
É possível apontar o que deu mais certo e em que lugares?
Eu preferi adotar uma estratégia onde eu não aponto o que deu certo segundo os meus julgamentos. Assim, ao longo da tese, eu mapeio aquilo que, para os atores históricos, foi considerado um sucesso ou um fracasso. Nesse sentido, o uso de soros antipestosos, por exemplo, é considerado como um grande sucesso tanto no Rio quanto em São Paulo, o que faz com que atores brasileiros possam agir no debate internacional sobre a eficácia desse tipo de medicamento. O Butantan, por exemplo, envia, em 1903, 600 frascos de soro antipestoso para Bombaim, o que representava 40% da sua produção. Mas na Índia esse objeto se mostra um fiasco, como aliás se mostram todos os soros antipestosos testados ali. A vacinação em massa, por outro lado, é mais bem aceita em Bombaim do que no Rio, algo que Oswaldo Cruz liga à oposição da população carioca às vacinas em geral. Em função desse obstáculo, a solução adotada no Rio para controlar a doença se volta para a caça aos ratos, o que é progressivamente apontado pelas autoridades da Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP) como a razão por trás do controle da doença na cidade. Essa política intensiva de caça aos ratos atrai a atenção do médico francês Paul-Louis Simond, que é quem propõe pela primeira vez que são as pulgas dos ratos os vetores principais da doença. Estando no Rio entre 1901 e 1905 para estudar a febre amarela, Simond tem a chance de observar os efeitos dessa política contre a peste e passa a tratá-la como possível modelo de combate racional à doença, algo que é de fato copiado em parte em Paris em 1920. Porém, pouco depois, membros do Instituto Pasteur colocam em dúvida a eficácia de caçar massivamente os ratos e defendem a adoção de outros tipos de política sanitária, centradas, nesse caso, em evitar o contato entre os ratos e os humanos.
No seu artigo De Bombaim ao Rio de Janeiro: circulação de conhecimento e a criação do Laboratório de Manguinhos, 1894-1902, publicado em HCS-Manguinhos em 2018, você examina a invenção da vacina antipestosa em Bombaim e a oposição construída entre ela e o soro antipestoso francês. Como estas correntes chegaram ao Brasil e como questões locais se relacionaram a esta disputa científica internacional? Como a criação do Instituto Soroterápico Federal se envolve na história?
Nesse artigo eu analiso duas controvérsias que se conectam. A primeira é sobre a eficácia terapêutica dos soros antipestosos e a outra envolve a eficácia profilática dos soros e das vacinas antipestosas. Eu quis mostrar ali que esses objetos, que estão na origem da criação do ISF (também chamado de Laboratório de Manguinhos) em 1900, eram problemáticos para os atores da época e não uma espécie de “caixa-preta” capaz de circular pelo mundo, como clássicos trabalhos sobre a fundação de Manguinhos dão muitas vezes a entender. Esses debates chegam ao Brasil de várias formas. Por exemplo, Oswaldo Cruz é um grande opositor da vacinação antipestosa em um primeiro momento, algo que poderia ser ligado em parte ao seu treinamento em Paris. Porém, essa oposição existe também em razão da chegada de um médico italiano ao Brasil em 1899, Camillo Terni, que passa a produzir no Rio de Janeiro sua própria vacina e soros antipestosos com o apoio da DGSP. Além do mais, Terni critica o soro de modelo francês em função dos resultados oferecidos por esse medicamento na Índia, colocando assim em risco o próprio “capital” científico de Oswaldo Cruz.
Na minha tese, eu desenvolvi a história apresentada no artigo. Pude assim mostrar, por exemplo, como essas disputas não apenas chegam no Brasil, mas como elas saem, transformadas, do país. Uma dessas “saídas” ocorre na mobilização das estatísticas do uso do soro antipestoso de Manguinhos, no Rio, pelos membros do Instituto Pasteur, em Paris. Defendo assim que os franceses empregam essas estatísticas para provar que a soroterapia antipestosa em geral funciona – incluindo aí o próprio soro antipestoso francês – algo que havia sido colocado em xeque na Índia. Porém, essa mobilização de dados não é passiva se vista do lado brasileiro. Pelo contrário, trata-se de uma estratégia usada por Oswaldo Cruz, que, tendo em conta o contexto de crise global da soroterapia antipestosa, se utiliza tanto dos bons resultados obtidos no Rio quanto de seus colegas franceses para consolidar o laboratório de Manguinhos no cenário internacional.
Houve uma disputa científica internacional? Quem saiu ganhando, científica e historicamente? Foi justo este resultado? Por quê?
A principal disputa internacional envolve o uso terapêutico dos soros antipestosos e ocorre em Bombaim. Nessa controvérsia, uma série de laboratórios, incluindo o Butantan, tentam convencer as autoridades britânicas a utilizar o seu medicamento no tratamento dos doentes naquele que é então o epicentro da pandemia. Eu sigo essa disputa ao longo de dois capítulos na minha tese, mostrando tanto as negociações diplomáticas que permitem a esses objetos chegarem a Bombaim quanto os testes realizados na cidade ao longo de mais de dez anos. Cientificamente, todos os atores perdem, pois os resultados dos testes apontam para uma ineficácia geral, fazendo assim com que nenhum desses medicamentos seja apoiado pelas autoridades de Bombaim. Do ponto de vista econômico, porém, o Instituto Pasteur ganha em parte essa disputa, pois aqueles que podem pagar, na Índia, continuam importando o soro antipestoso do laboratório parisiense.
Na sua visão como historiador, é necessária uma revisão histórica do desenvolvimento científico relacionado à peste bubônica de forma que os créditos pelos avanços sejam mais bem distribuídos?
Os créditos nunca foram exatamente mal distribuídos, eles foram apenas extremamente nacionalizados. Assim, na historiografia francesa, os principais herois são aqueles que faziam parte do Instituto Pasteur: Alexandre Yersin e Paul-Louis Simond. Na historiografia brasileira, esses herois são Oswaldo Cruz e Vital Brazil, enquanto na Índia esse posto é ocupado por Waldemar Haffkine. Por conta disso, a minha intenção na tese foi contestar esse nacionalismo metodológico e mostrar precisamente as interações entre todos esses atores e principalmente os limites das soluções que eles propunham.
Que impacto você espera que a sua tese tenha? Acredita que ela terá o efeito desejado?
Eu começo a minha tese pelo final da história, isto é, em 1922, momento em que um dos membros do Instituto Oswaldo Cruz, Henrique Figueiredo de Vasconcellos, afirma pela primeira vez que a criação de uma vacina antipestosa por Oswaldo Cruz marca o início de uma microbiologia brasileira. Eu mostro que a invenção desse discurso se liga tanto ao centenário da independência nacional quanto à crise política e científica gerada pela gripe espanhola. Por uma coinciência, nós nos encontramos agora não apenas diante de um novo centenário da independência, mas também face à crise gerada por uma pandemia. Eu espero assim que a minha tese possa ser publicada em breve no formato de um livro, em português, e que a partir dela seja possível pensar uma história da ciência menos nacional e mais global.
Você foi aluno e orientado por Kapil Raj, uma autoridade em história global da ciência. A tese é um exemplo dessa perspectiva?
Existe uma tendência a compreender a história global como um bloco monolítico. Eu não concordo com essa posição e prefiro vê-la como um guarda-chuva onde diferentes correntes existem e se chocam, tais como a história comparada, a histoire croisée, a história conectada, a história circulatória e a micro-história global. Nesse sentido, a minha tese tenta criar um diálogo e uma articulação entre essas três últimas. Eu não parto assim da ideia de que a história global é um sinônimo de uma perspectiva “global”, na qual o historiador, como Deus, poderia ver o mundo em sua totalidade. Ao contrário, eu parto de atores bem localizados, aqueles que estudam a peste no Rio de Janeiro e em São Paulo e, a partir deles e do mundo que eles criam, eu mapeio as conexões que eles estabelecem com outros atores trabalhando sobre a peste em Bombaim e em Paris. Depois, eu sigo a circulação material de objetos, de textos, e de pessoas entre esses locais, e tento entender os resultados desses processos que não estão presos às fronteiras das nações. É nesse sentido que a minha tese é um exemplo de uma história global das ciências.
Como você vê a cena atual da história global da ciência/saúde?
A história global ainda é um campo jovem e em gestação. Consequentemente, a história global da ciência e da saúde se encontra na sua infância, mas eu vejo três grandes riscos nessa nova cena: 1) que uma história global da ciência/saúde vire um difusionismo 2.0, no qual a centralidade europeia não será questionada, mas vista agora em uma “perspectiva” global; 2) que ela reforce os nacionalismos com uma nova roupagem, algo que poderia ser resumido na ideia das “contribuições globais” dos brasileiros, dos indianos, dos chineses, para a “ciência”; 3) que uma história global da saúde vire apenas um instrumento de legitimação da ideia extremamente contemporânea de saúde global. Existe então muito o que se fazer para construir uma cena nova, dinâmica e inovadora de história global da ciência e da saúde, mas diferentes trabalhos estão sendo publicados nesse sentido, tanto no Brasil quanto no exterior, e eu espero que a minha tese venha ajudar na construção desse edifício.
É possível traçar paralelos entre a corrida da vacina contra a Covid-19 e a da peste há cem anos?
Existem dois possíveis paralelos, mas antes de falar deles, eu gostaria de insistir em uma diferença. Ao contrário da vacina da Covid-19, que vai levar mais ou menos um ano para ser finalmente aplicada em larga escala, a primeira vacina contra a peste, desenvolvida por Haffkine em Bombaim, é utilizada em populações humanas em apenas três meses depois dos primeiros estudos, sendo Haffkine uma das “cobaias” iniciais. Depois dessas primeiras aplicações, o que ocorre não é exatamente uma corrida para desenvolver novas vacinas contra a peste, mas sobretudo para aprimorar a vacina original de Haffkine. De fato, todas as vacinas antipestosas criadas antes da Grande Guerra seguem mais ou menos o modelo daquela inventada em Bombaim e as principais diferenças entre elas residem tanto no meio utilizado para cultivar os bacilos da peste (caldo em Bombaim, agar-agar no Rio de Janeiro, por exemplo) ou nas técnicas de estandardização do produto (medição da opacidade em Bombaim e por pesagem no Rio de Janeiro, por exemplo).
Agora os dois possíveis paralelos, que são também dois exercícios de “futurologia”. A vacinação contra a peste entre 1896-1920 marca pela primeira vez o uso de vacinas pasteurianas em larga escala e em diferentes partes do mundo. Até então, a vacina antivariólica era a única aplicada dessa forma, mas sua invenção antecedia em quase cem anos os trabalhos de Pasteur. Por outro lado, as vacinas ditas pasteurianas não eram usadas no final do século XIX que contra doenças muito raras, como a raiva. Com a peste, esse contexto muda e campanhas de vacinação são organizadas da Índia ao Japão, passando pelo Brasil e mais tardiamente pela França. Com a vacina da Covid-19, nós veremos provavelmente um caso semelhante, no qual uma mesma vacina, ou um grupo de vacinas, será aplicada simultaneamente em uma escala global, o que vai permitir talvez novos estudos sobre possíveis diferenças nas respostas imunes e na eficácia, comparações que também ocorreram na época da peste.
O segundo paralelo tem a ver com os limites da vacina. Uma das grandes lições da pandemia de peste para os atores que a viveram foi descobrir que a vacina antipestosa, sozinha, não poderia controlar a doença, mas somente se ela fosse incluída em um conjunto de ações sanitárias. Essas outras estratégias foram diferentes em cada foco da pandemia, mas elas geralmente convergiram para o controle dos vetores da peste: os ratos e suas pulgas. Assim, alguns lugares optaram por caçar os ratos, outros por construírem novos prédios à prova desse tipo de animal, outros tentaram ainda reformular o sistema de coleta de lixo e de esgoto. Da mesma forma, ao que parece, a Covid-19 só vai ser totalmente controlada se determinados padrões de interações entre animais e humanos for reformulado, como a possível ameaça representada pelas fazendas de visons da Dinamarca acabou de mostrar. Em outras palavras, as vacinas contra a peste não foram uma bala mágica e, provavelmente, as da Covid-19 também não serão.
Leia em HCS-Manguinhos:
A pasteurização do império francês – Resenha de Matheus Alves Duarte da Silva para o livro Pasteur’s empire: bacteriology and politics in France, its colonies and the world, de Aro Velmet, 2020, Oxford University Press (vol. 27, n. 3, set 2020)
De Bombaim ao Rio de Janeiro: circulação de conhecimento e a criação do Laboratório de Manguinhos, 1894-1902 – Artigo de Matheus Alves Duarte da Silva (vol.25, no.3, jul./set. 2018)
“Não é meu intuito estabelecer polêmica”: a chegada da peste ao Brasil, análise de uma controvérsia, 1899 – Artigo de Dilene Raimundo do Nascimento e Matheus Alves Duarte da Silva (vol.20, supl.1, nov. 2013)
Ideias, práticas e instituições da medicina naval na origem da medicina tropical francesa – Resenha de Matheus Alves Duarte da Silva para o livro The emergence of tropical medicine in France, de Michael Osborne, 2014, University of Chicago Press (vol. 23, n. 3, set 2016)
Leia no Blog de HCS-Manguinhos:
Os significados da história da saúde pública global
Suplemento da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos (v. 27, supl.1, 2020) reúne estudos que contribuem para a compreensão dos desafios atuais
Boletim da SBHC traz entrevista com Kapil Raj
Professor de História da Ciência na École des Hautes Études en Sciences Sociales fala sobre a sua teoria sobre a circulação de conhecimentos
Como citar este post:
DUARTE DA SILVA, Matheus Alves. Brasil, Índia e França: saberes sobre a peste bubônica sob o olhar da história global, entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos, publicada em 08 de novembro de 2020. Disponível em www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/brasil-india-e-franca-saberes-sobre-a-peste-bubonica-sob-o-olhar-da-historia-global