Bodes expiatórios contra o mal-estar social que as doenças causam

Os empestados são os de fora: a esquistossomose na cidade de São Paulo, 1930-1970

Abril/2020

André Mota[1]

André Mota

Os historiadores Marcos Cueto e Claudio Bertolli Filho, em recentes entrevistas que deram sobre a Covid-19 (2020), foram enfáticos em registrar o aspecto classista de uma epidemia ao atingir de forma muito mais avassaladora os pobres e vulneráveis, carregando uma série de elementos que precisam ser compreendidos nas suas entrelinhas.

Para isso, tomam-se os anos de 1930-1970 na cidade de São Paulo, quando se assistiu a um súbito aumento populacional, em função do processo migratório, notadamente de grupos vindos da Bahia, de Pernambuco, de Alagoas, do Sergipe e da porção setentrional de Minas Gerais. O governo estadual subsidiou um primeiro processo migratório e acabou atraindo um segundo fluxo, agora sem subsídio ou qualquer controle de entrada. Na capital paulista, tais grupos foram espalhados pelas favelas, cortiços e zonas periféricas da cidade, abandonados à sorte, contribuindo para que logo certos discursos sobre eles variassem entre “bem-vindos” e “massa empesteada”. Esse foi o caso da esquistossomose na pauliceia.

Pelos estudos produzidos, entre os anos de 1950 e 1970 houve a expansão das áreas endêmicas de esquistossomose no país, com focos de transmissão em São Paulo, no Paraná, no Piauí, no Maranhão, em Goiás e em Santa Catarina. Tal quadro ganhou preocupação médico-sanitária em nível nacional paulatinamente. Entre 1908 a 1939 identificou-se na literatura brasileira 107 trabalhos e 1940 e 1949 já eram 202 publicações. Em 1957, numa conferência realizada no Instituto Butantã sobre “Alguns aspectos da esquistossomose no estado de São Paulo”, o médico José Manoel Ruiz foi enfático: “pelo exposto, concluímos que o problema da esquistossomose existe realmente em São Paulo, provavelmente em fase mais adiantada do que se supõe. Não só existe, mas está a exigir providências urgentes e realmente objetivas”.

Os primeiros casos da esquistossomose teriam chegado ao estado de São Paulo na primeira metade do século XIX, no auge da cafeicultura, e a ocorrência autóctone de esquistossomose é identificada no ano de 1923 na cidade de Santos.  Avaliando a capital paulista e os primeiros casos da esquistossomose, a questão da migração nordestina apareceu quase sempre como único fator determinante. Aos nordestinos imputava-se a responsabilidade pela proliferação do parasita. Já a desestrutura da máquina pública de saúde estadual e municipal, a ausência de saneamento básico, a falta de moradia e a exploração do trabalho eram fatores que passavam ao largo de parte das interpretações.

O parasitologista Luis Rey em 1952 tentou contornar essa identificação de grupo ao avaliar que: “quem percorria a periferia de São Paulo perceberia grande número de pequenas lagoas, sítios para a transmissão da esquistossomose, principalmente porque a população carente que viveria nas suas proximidades, utilizando dessas lagoas […] além das favelas localizadas nas várzeas, áreas anteriormente vazias ou exclusivas das indústrias.” No entanto, os meios jornalísticos trariam uma interpretação mais culpabilizadora. Exemplarmente os casos da transmissão foram identificados, principalmente, em áreas próximas ao rio Tietê, com dois casos de esquistossomose manzoni autóctone encontrados nas lagoas do Tatuapé, afluentes do Tietê, onde as favelas cresciam a passos largos, junto aos esgotos a céu aberto.

Em abril de 1958 foi reportado pela primeira vez os primeiros casos autóctones na cidade: “estão internados no Hospital das Clínicas dois irmãos menores com diagnóstico de esquistossomose mansônica, na forma aguda da moléstia, que provavelmente adquiriram brincando em lagoas formadas às margens do Tietê, no Tatuapé. Há fortes suspeitas que se tenham verificado os dois primeiros casos autóctones dessa moléstia na capital de São Paulo, pois no local onde os meninos costumavam a brincar foram descobertos caramujos transmissores da doença” (O Estado de S. Paulo, 2 mar. 1958, p. 1). Indo além, identificaram-se os responsáveis pela situação: “nesse local, estão sendo feitas várias construções, e nelas trabalham vários nordestinos. Esses operários, procedentes de regiões onde a esquistossomose é endêmica, poderiam ter contaminado as águas” (Idem). Dias depois, ganhou atenção a reportagem sobre as condições de moradia naquelas paragens e, mais uma vez, a presença de “nordestinos”: […] Nas margens das lagoas, cresce vegetação aquática exuberante, formando locais propícios para a criação de caramujos transmissores da moléstia. Nota-se, porém, que os moradores do local não conhecem os moluscos. Grande parte dos moradores da favela são nordestinos (O Estado de S. Paulo, 3 abr. 1958, p. 3).

Esses são alguns exemplos de que nessa conjuntura, se certas avaliações ponderavam sobre a endemia, outras decorreram na produção de termos estigmatizantes, ajudando a amalgamar representações em torno dessa população que habitava a cidade, redundando numa enxurrada de definições depreciativas de toda ordem, somando-se às “pestes” que teriam trazido em sua bagagem. Eram os “cabeças-chatas”, termo depreciativo nascido em São Paulo nos anos de 1930 e que, conforme indicou a historiadora Mariza Romero (2014): “foi dentro desse enquadramento, também de proliferadores de doenças, que se criaram novos significados para sua presença na cidade de São Paulo, muitos deles assimilados pelos “paulistas”. Talvez seja bom exemplo a fala da moradora da Mooca, que, diante dessas notícias que chegavam, vociferou nos anos de 1980: ‘Eles empestaram tudo, deveriam voltar tudo pra lá’.”

Por todo esse exposto, sobre a identificação do processo migratório como único fator de análise, Luiz Jacintho da Silva (1985) afirmaria em seu estudo: “o fator migração, quando analisado independentemente de seus determinantes (a industrialização) e de suas consequências (o tipo de urbanização), perde poder explicativo no processo de disseminação da esquistossomose, ainda que nele tenha crucial importância.” Nesse sentido, é preciso complexificar as análises sobre endemias e epidemias, tomando o sistema econômico em questão, o modelo tecnológico de saúde pública implicado no momento, identificando as condições sociais e de vida da população e, sobretudo, da intricada história da organização da cidade. As doenças representam um mal estar social. A criação dos bodes expiatórios sua maior reação.  

[1] Historiador, Professor Associado do Departamento de Medicina Preventiva-FMUSP e Coordenador do Museu Histórico-FMUSP

Como citar:

Mota, André. Bodes expiatórios contra o mal-estar social que as doenças causam. In: Revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos (Blog). Disponível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/bodes-expiatorios-contra-o-mal-estar-social-que-as-doencas-causam/. Publicado em 16 abr. 2020. Acesso em 16 abr. 2020. 

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Entre vacinas, doenças e resistências: os impactos de uma epidemia de varíola em Porto Alegre no século XIX, artigo de Fábio Kühn e Jaqueline Hasan Brizola (vol.26, no.2, abr 2019)

Zika e Aedes aegypti: antigos e novos desafios, artigo de Flávia Thedim Costa Bueno et al (v. 24, no.4, out 2017)

Cidade-laboratório: Campinas e a febre amarela na aurora republicana, artigo de Valter Martins (vol.22, n.2, jan./abr. 2015)

As epidemias nas notícias em Portugal: cólera, peste, tifo, gripe e varíola, 1854-1918. Artigo de Maria Antónia Pires de Almeida, Jun 2014, vol.21, no.2

Não é meu intuito estabelecer polêmica”: a chegada da peste ao Brasil, análise de uma controvérsia, 1899 Artigo de Dilene Raimundo do Nascimento e Matheus Alves Duarte da Silva, Nov 2013, vol.20, suppl.1

Bactéria ou parasita? a controvérsia sobre a etiologia da doença do sono e a participação portuguesa, 1898-1904. Artigo de Isabel Amaral. Dez 2012, vol.19, no.4

‘Formidável contágio’: epidemias, trabalho e recrutamento na Amazônia colonial (1660-1750), artigo de Rafael Chambouleyron, Benedito Costa Barbosa, Fernanda Aires Bombardi e Claudia Rocha de Sousa (vol.18, no.4, dez 2011)

A epidemia de cólera de 1853-1856 na imprensa portuguesa, artigo de Maria Antónia Pires de Almeida (v. 18, no.4, dez 2011) 

A gripe de longe e de perto: comparações entre as pandemias de 1918 e 2009, artigo de Adriana Alvarez et al. (vol.16, no.4, dez 2009)

Antiescravismo e epidemia: “O tráfico dos negros considerado como a causa da febre amarela”, de Mathieu François Maxime Audouard, e o Rio de Janeiro em 1850. Kaori Kodama (vol.16, no.2, Jun 2009)

A epidemia de gripe espanhola: um desafio à medicina baiana, artigo de Christiane Maria Cruz de Souza (vol.15, no.4, dez 2008)

O Carnaval, a peste e a ‘espanhola’. Artigo de Ricardo Augusto dos Santos (v.13, n.1, jan./mar. 2006)

A gripe espanhola em Salvador, 1918: cidade de becos e cortiços. Artigo de Christiane Maria Cruz de Souza (vol.12, no.1, abril 2005)

Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro, artigo de Adriana da Costa Goulart (v. 12, no.1, abr 2005) 

A cidade e a morte: a febre amarela e seu impacto sobre os costumes fúnebres no Rio de Janeiro (1849-50) – Cláudia Rodrigues (vol.6, no.1, Jun 1999)

 

E ainda, na revista HCS-Manguinhos, artigos em inglês e espanhol:

La “cultura de la sobrevivencia” y la salud pública internacional en América Latina: la Guerra Fría y la erradicación de enfermedades a mediados del siglo XX, artigo de Marcos Cueto (vol.22, no.1, mar 2015)

Curing by doing: la poliomielitis y el surgimiento de la terapia ocupacional en Argentina, 1956-1959., artigo de Daniela Edelvis Testa (vol.20, no.4, dez 2013)

Las epidemias de cólera en Córdoba a través del periodismo: la oferta de productos preservativos y curativos durante la epidemia de 1867-1868., artigo de Adrián Carbonetti e María Laura Rodríguez (vol.14, no.2, jun 2007) 

El rastro del SIDA en el Perú, artigo de Marcos Cueto (vol.9, 2002)

Caponi, Sandra. Lo público y lo privado en tiempos de peste. Jun 1999, vol.6, no.1