‘A regulamentação será positiva para a diferenciação entre memória e história’

Agosto/2013

Ivana Stolze Lima

Ivana Stolze Lima

O blog da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos está ouvindo pessoas ligadas à área de história para registrar a diversidade de visões acerca do Projeto de Lei 4699/2012, que regulamenta a profissão de historiador. A historiadora Ivana Stolze Lima, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da PUC-Rio e coordenadora do Programa de Incentivo à Produção do Conhecimento na Fundação Casa de Rui Barbosa, enviou sua opinião:

“É importante considerar a questão da profissão do historiador em uma perspectiva mais histórica, tanto do ponto de vista teórico como institucional.

No século XIX, a história se tornou um paradigma explicativo compartilhado pelas ciências naturais e sociais. O mundo natural era entendido em uma perspectiva temporal a partir da concepção de evolução. O que hoje chamamos “biologia” chamava-se “história natural”. A antropologia explicava as diferenças entre as sociedades como dispostas também numa grade temporal, dispondo-as em uma suposta uma escala evolutiva entre “primitivos” e “civilizados”. As línguas eram estudadas em uma perspectiva diacrônica. As genealogias e a busca das origens constituiam o grande paradigma explicativo. Assim, temos essa experiência de que a história não é exatamente, ou não é apenas, uma área de conhecimento, é uma forma de compreender diferentes fenômenos do mundo. Claro que houve rupturas em relação a esse grande “paradigma histórico”, dadas pelo estruturalismo e por muitas outras intervenções teóricas que atravessaram o século XX. Mas é bom considerar que quando a história se constituiu como disciplina autônoma, discutindo métodos, criando instituições e redes, e possibilitando meios de uma formação compartilhada para os historiadores (mesmo quando não havia cursos específicos), nesse mesmo contexto, as demais áreas organizavam seu conhecimento naquele paradigma histórico.

Outro elemento de dimensão epistemológica é que as próprias áreas do conhecimento têm um passado, uma temporalidade que é constitutiva também do modo como definem e recortam seus objetos, como constróem seus laboratórios, como exercem seus ofícios, como se formam, como registram e fazem circular seus resultados, etc. Assim, por mais um motivo, a história é uma perspectiva que está presente em qualquer área. A psicologia tem uma história. A educação tem uma história. A medicina… Daí, logicamente, a possibilidade e a necessidade de investir também nesse tipo de abordagem. Conhecer a história da psicologia é essencial a um bom psicólogo: o sujeito, as relações familiares, o entendimento do corpo, as noções das idades da vida, tudo isso muda e está necessariamente no tempo.

Falemos um pouco de Brasil. A produção crítica brasileira se constituiu, por muito tempo, pela permeabilidade das áreas. Durante boa parte do século XIX e XX os homens envolvidos com a produção intelectual transitavam em diferentes frentes, o escritor era também historiador, o médico elaborava análises sobre a sociedade, etc. Veja uma figura como Gonçalves Dias, por exemplo. Além da literatura, ele recolhia documentos em cantos espalhados do Brasil, escrevia sobre etnografia indígena. Ou Manoel Bonfim, médico que foi um dos grandes pensadores da sociedade brasileira. E quando as áreas e disciplinas se delinearam com mais precisão, e a universidade brasileira foi finalmente criada a partir da década de 1930, as grandes análises históricas e sociais continuaram a articular-se com o conhecimento econômico, geográfico, bem como com a literatura e as artes. Observemos que mesmo com a interdisciplinaridade, constitutiva do conhecimento, as áreas mantêm sua específicidade e seus fazeres próprios, nos quais treinam seus alunos, e é onde se espera que os egressos acumulem experiências, reconheçam a bibliografia, os procedimentos básicos, a manipulação conceitual.

Mas diante da condição humana e terrena de estarmos todos irremediavelmente submetidos ao “Sr. Tempo” será que há uma especificidade da disciplina histórica? Acredito que sim, e por isso sou favorável à regulamentação.

Acho que faz diferença ficar entre quatro a cinco anos lendo e refletindo sobre transformações sociais no tempo, sobre os mais diferentes tipos documentais e sobre como tratá-los, sobre tradições historiográficas passadas. Os referenciais da história são muito amplos e é necessário muito exercício para manuseá-los. É importante aprender a diferenciar os mais diferentes relatos sobre um acontecimento passado de uma análise historiográfica. Aprender na prática porque o texto jornalístico é diferente do texto historiográfico.

Passar quatro a cinco anos fazendo a análise dos mais diferentes tipos de discurso é também um exercício fundamental. Um dos pontos mais importantes que se espera que um aluno de graduação formado em história é que possa diferenciar uma produção memorialista de uma análise historiográfica, isso é essencial nos dias atuais, quando há um certo revival do passado, que esmaece visões críticas e fundamenta abordagens parciais do passado. A análise historiográfica necessariamente tem que dar conta de diferentes perspectivas. Necessariamente tem que considerar o que já foi escrito sobre determinado tema. Tem que reconhecer o potencial dos conceitos explicativos e saber que a forma como hoje se estuda e opera o conhecimento histórico é distinta de outras formas.

No programa de iniciação científica da Casa Rui, o setor de História tem uma tradição de incorporar alunos de diferentes cursos. Mas quando não são de história nosso trabalho de orientação precisa dispender um bom tempo para ensinar elementos básicos sobre trabalho em arquivos, sobre manuseio da referenciação bibliográfica e documental, e mesmo sobre os mais básicos textos e conteúdos de história. Claro que há interessados que conseguem se incorporar bem aos projetos, e que vão levar essa experiência para sua trajetória acadêmica futura. Mas nem sempre interessa a um aluno de letras, teatro ou produção cultural, e às vezes nem mesmo ao de ciências sociais, entender a fundo o período com o qual trabalhamos, enfrentar uma bibliografia que ele não estará reencontrando em outros espaços de sua formação. Hoje em dia, com a especialização cada vez mais crescente, não sei se teremos outros colegas com sua formação autodidata em história, como alguns colegas do setor, egressos de outras áreas.

Um dos pontos críticos que tem sido pouco comentado é o da diferenciação entre memória e história e acredito que a regulamentação será muito positiva para essa diferenciação. A história sempre foi um campo de disputas, como na polêmica exposição sobre a história do senado que havia “suprimido” o impeachment de Collor. O historiador aprende a lidar com seleções e entende que lacunas e ênfases dizem respeito à narrativa que se constrói e à memória que se busca projetar na sociedade. As próprias disputas que envolvem as narrativas sobre o passado são objeto de análise crítica e reflexão. Então, ter um profissional treinado nessa experiência é um elemento importante.

Quando se fala na necessidade de uma ampla discussão do projeto de lei, eu lembro que em 1985, no curso de Metodologia da História, no IFCS-UFRJ, a professora Manuela Ramos Souza e Silva já falava que era fundamental ter a profissão de historiador definida. Acho que ouvi isso no primeiro dia de aula. Na PUC-Rio há uma série de cinco disciplinas, feitas ao longo da formação, que discutem o ofício do historiador. Portanto, há sim uma longa discussão em curso, que felizmente agora chegou a um debate mais amplo.”

Ivana Stolze Lima é professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da PUC-Rio e coordenadora do Programa de Incentivo à Produção do Conhecimento na Fundação Casa de Rui Barbosa.

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